Tema 196 - FALANDO SÉRIO
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BEIJA E ABRAÇA
Doca Ramos Mello

Peço que não me julguem pedante ou mesmo ingrata, mas não gosto muito de me misturar a pessoas que se intitulam escritores sem que ninguém mais além delas mesmas as reconheçam como tal, até porque eu nunca fui escritora na vida, no máximo escrevinho umas besteiras, loucuras da minha cabeça, somente na obediência ao meu espírito debochador. Porque tem umas coisas que me entalam a garganta e e u acho que, atirando minhas letras certas por caminhos inteiramente tortos, me divirto e ainda faço catarse da minha indignação.

Apenasmente, como diria Dias Gomes. Daí a me intitular escritora vai muita distância, eu não sou idiota.

Entretanto, vira e mexe recebo aqui uns convites para "publicar livros". Normalmente isso é uma cumbuca para pessoas que sonham com um livro na praça, o talento reconhecido, a conta bancária recheada e muitos fãs - mas não passam disso: sonhos, quimeras. Ora, quem não quer ser o Paulo Coelho (eca!) na vida? Eu sempre digo que desejo me tornar uma Paula Coelha, escrever "As Valéryas", viajar pela Sibéria com Glória Maria, a Chata, levando conosco o Malvinho Salvador (ai, Senhor!), para que ele entre no mar gelado de lá, inteiramente nu, em minha homenagem, como uma moça fez para o dito "mago", o rei do marketing! Escrever que é bom mesmo...

E isso é o auge do meu deboche! Se realmente tivesse talento literário à altura, diri a que anseio ser um Milton Hatoum, um Werneck, um João Ubaldo, a Maria Alice Barroso, a Lia Luft, no mínimo. Citar o parceiro de Raul Seixas é só uma gracinha. Relevem a piada.

Sempre respondo que não me interessam tais publicações, demora um pouco, mas eles vão desistindo de mim, graças a Deus. Principalmente quando afirmo que não dou um único tostão para que me publiquem. Dia desses, apareceu uma editora com abordagem inovadora: dizia que o "escritor" não teria de pagar nada pela impressão, mas depois bastava ler as bases do contrato para saber que a única pessoa que investiria grana no negócio arriscadíssimo seria o bobo do autor! E eles só iriam contabilizar os lucros de mais um conto do vigário... Há ainda convites para edição cooperativada, mais um me-engana-que-eu-gosto recheado de textos ruins de um monte de iludidos, com português claudicante e conteúdo remelento, uma coisa muito feia.

Sem contar que eu não suporto aquela melança nojenta! A criatura a credita que escrever é açucarar o texto com imagens melosas mal estruturadas, clichês românticos, pobreza vocabular, e tome "coração espetado por flechas", moinho a rimar com ninho, "tudo de mim do fundo do meu peito arfante", etc. - um cenário de horror, na grossa maioria das aspirações. Que faria eu ali no meio, com minhas ideias costuradas com cinismo e sem o menor objetivo de emocionar quem quer que seja?!

Ora, pois.

Há algum tempo, li reportagem sobre uma rede de mulheres escritoras e entrei no site acreditando que encontraria por lá Cecílias, Clarices, Pagus... Mas era, mais uma vez e na sua maioria, uma multidão de sonhadoras. Dessa entrada me resultou o contato da associação, e eu até pensei em responder aos convites para filiação sempre muito gentis - se há uma coisa que eu não consigo enfrentar é a gentileza de maneiras. Por isso, decidi que responderia da melhor forma possível, sem ferir a suscetibilidade de ninguém ali, afinal a presidente realmente faz um trabalho, só que está longe de esse tipo de congregação me interessar...

Eu encano com detalhes.

Olha só.

Até ia indo bem o nosso contato, eu quase paguei a filiação, muito mais para responder gentilmente ao convite que para outra coisa qualquer, quando no final da comunicação da presidente da associação, ela me enviou "uma abraça" - julguei ter sido erro de digitação. Logo depois, veio outra mensagem terminada por "uma beija" - e isso se tornou regular nos e-mails dela. Quase enfartei. E entendi que aquilo de "abraça, beija" é o viés dito feminista da organização! Fala sério... Isso só não é pior que uma proposta absurda, segundo a qual o ideal feminista dizia que se deveria tratar Deus por "ela"... Valei-me, meu Santo Expedito!

Não respondi para a associação, fiquei bêbada com aquele negócio de beija/abraça.

Eu não gosto de nada do tipo dia internacional da mulher, delegacia da mulher, valorização da mulher, salário da mulher, etc ., etc., etc. Simplesmente abomino essas iniciativas ou discussões porque só servem para separar as pessoas e, se alguma coisa me acontecer no âmbito policial, desejo ser atendida em uma delegacia para homens, mulheres, homossexuais, negros, brancos, índios, cafuzos, e por aí vai.

Dia desses, lá fui eu encenar a simpática e ler crônica de uma das filiadas. Pois acredite se quiser, a criatura argumentava que o modo pelo qual nascem as crianças e após o nascimento levam um tapa no traseiro seria, na opinião dela, responsável pela violência que grassa neste mundo... Vem cá, eu mereço?!
Continuo a receber mensagens não só da presidente, com aqueles medonhos "abraça/beija" em lugar de abraço e beijo, mas também de suas filiadas. Fico mortificada cada vez que abro a mensagem e lá estão as expressões que me arrepiam, às vezes sinto vontade de pedir que não façam isso com a língua portuguesa nem conosco, mas vou deixando de lado porque percebo que há tantas ilusões envolv idas e, de alguma forma, as sonhadoras alimentam seus corações. Vai ver essa seja a maior contribuição da tal rede, isto é, arregimentar moinhos de vento e fazer girar a emoção dessas mulheres. Mas para mim, não rola: eu sou cruel, sorry...

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