Tema 196 - FALANDO SÉRIO
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OCEÂNIDE
Eduardo Prearo

Estigmas. Pensava nos estigmas, e naquele por que mais sofria. Mas ele não era, em outras esferas, visto como demente, e sim como malandrão. De qualquer maneira, como era visto não importava tanto, pelo menos naquele momento de sua vida. Fazia frio, e mesmo ele tendo fechado os vitrôs, um ventinho entrava não se sabia de onde. Águeda não ligaria mais nem ninguém. Era seu destino ficar isolado até que a miséria de alguma forma o movimentasse. Pensava em Águeda e nas outras Evas que surgiriam com seus instintos um tanto ou quanto diabólicos. Na primavera os pássaros despertavam no início da madrugada, e ele sabia a hora em que iam dormir: no final da tarde. A noite não fora muito agradável porque ele queria o amor do mundo, como se isso fosse possível. Ele dera uma volta pela Paulista, andara de subviário; agora era tarde ou então cedo demais; faltava pouco para o sol nascer. A lua estava em gêmeos, mas isso não tinha muito importância para ele, Gilberti; nunca conseguira tirar proveito da astrologia. Largara de vez os remédios por causa dos sintomas extrapiramidais. Outrora, quando o fervor da juventude eclipsava sua doença ou o espectro dela, nunca dera valor à previdência. Mesmo agora, após os cinquenta, não sabia como começar a ser previdente. Para quê?, diriam. Olhou para o telefone azul sobre a mesa e um morim, e achou que jamais o atenderia de novo para conversas amorosas. Precita mania de achar-se impopular...eram tantas as precitas manias! Foi por volta das seis da manhã, quando levantou-se do sofá para ir dormir que o telefone tocou. Ah, a essa hora é engano, pensou. Mas nas outras também eram, ou era alguém fazendo telemarketing. Adormeceu e acordou depois do meio-dia. Saiu, encontrou Appolonia na OFN (Ordem Filantrópica Nacional), e não creu que precisava conversar, que precisava falar sobre sua vida àquela mulher. Claro que de novo se sentiu inferior e pouquíssimo batalhador quando recordou alguns de seus trabalhos como cumin, quando uma garota, também cumin, veio lhe dizer que o gerente "foi um dia um de nós, foi um dia cumin, sabia?". Sim, claro, você é inferior ao gerente, disse-lhe Appolonia; a garota estava certa; o gerente deu um duro danado para estar onde está, completou ela. Como ela sabia? Por que Gilberti não aceitava ser o inferior? Chegou à conclusão de que todos os seus relacionamentos não haviam dado certo por causa de sua inferioridade, e que ele tentara saber dessas pessoas o porquê da rejeição súbita; claro que sem êxito porque saber o porquê não era nada mais nada menos do que DR. Disse à Appolonia que talvez voltasse a estudar jornalismo, e aí veio uma nova crítica: "mas pra ser jornalista é preciso ser articulado, você não é, você é tímido." Por que fora falar sobre sua vida à Appolonia de novo, por que não se calara? Mas tinha de pagar, não respeitava mesmo as pessoas, e achou que havia engolido Deus antes de encontrar Appolonia, naquela fria tarde de sábado. Agora era noite; sentiu vontade de ler e já sabia que iriam lhe dizer que ele lia pouco. As pessoas saem aos sábados, divertem-se, são econômicas, encontram-se, distraem-se, parecem felizes, pensou. Ele não, estava fadado a ficar sozinho; talvez fosse até melhor. Ligou o televisor: programas humorísticos, jogos de futebol, entretenimento para adultescentes, nada. Appolonia lhe dissera que quando se passava dos quarenta, não adiantava querer ficar enxuto, sarado, não. O problema estava nele, era ele, Gilberti, enfim, que complicava tudo. Dariam-lhe um susto, internariam-no; talvez ele ficasse no corredor de um hospital público, apavorando quem passasse; afinal, o que ele queria, que alguém pagasse suas contas? Prebendas eram pra poucos. Dá um chute nesse vagabundo! Lembrou-se de Águeda, dos bons momentos que passara com ela. Sem ela, sentia-se um lixo, parcialmente perdido. Sentia que a compreendia; ele também não gostava de afeminados, mas era um, sim, era um pra muitos. Sentou-se defronte da máquina de escrever e pensou em escrever um roteiro para um curta-metragem. Era a história de um homem que de repente descobre uma maneira de sair do país e vai para Nova Iorque, chegando no aeroporto ao som de Remember me, completamente deslumbrado. Mas só pensou, não começou a escrever. Olhou para a foto da Nossa Senhora dos Desamparados, pensou em Suprema, que talvez pudesse ser feliz com Suprema, um homem amplamente aceito pela sociedade. A amizade com Suprema começara desde que Águeda desaparecera. Suprema não era vagabundo como ele, era um bofe trabalhadeiro, e Suprema não imaginava que Gilberti a apelidara assim; ai dele se Suprema soubesse. Gilberti também tinha apelidos os quais não tomava conhecimento; ele sabia que tinha. Se quisesse ver Suprema, não bastava ligar pra ele; Suprema não tinha telefone nem celular; Gilberti teria de se deslocar até um beco onde havia um hotel; era lá que o Suprema morava. E Gilberti foi; foi naquela noite fria até o bequinho. A recepcionista estava vestindo um terno azul-marinho, toda-toda, e disse a Gilberti que Suprema não queria ser incomodado, mas que ia dar um jeitinho, afinal, pela cara de bebê-mimado dele, a situação estava desesperadora. Gilberti subiu e bateu na porta do 107:

"Joaquim José? Joaquim José? É Gilberti. Eu vim lhe fazer
um pouco de companhia. Eu...bem, eu sei que você está sozinho, não está? Joaquim José? Joaquim José?"

"Pode entrar, infeliz, a porta está aberta, não percebeu ainda?"

"Oi, eu vim pra conversar; vou me sentar nesta poltrona, está bem?"

"A ladainha hoje está longa?"

"Não, não é ladainha não. Eu só não estou preparado para enfrentar toda a miséria que está destinada a mim."

"Olha, eu acordo cinco horas da manhã todos os dias."

"Eu também."

"Ah, duvido."

"Acordo sim. Só que lá onde trabalho, ninguém acredita que eu trabalho... só que lá onde trabalho só abre as oito, então ou eu fico andando por aí ou então fico sentado no meio-fio. Um dia um polícia veio me perguntar por que eu estava sentado no meio-fio, se estava com algum problema, se eu estava vindo da balada. Imagine eu em uma balada. Quem sou eu..."

"Tá, tá, e o que o senhor disse?"

"A verdade. Eu disse que acordei as cinco da manhã e que estava esperando a empresa abrir para eu ir trabalhar. Falar que se levanta as cinco é sempre impressivo."

"O senhor é inferior, babaca. Gente inferior não impressiona se acorda as cinco não. Isso é obrigação. Mas por que não dorme mais um pouco?"

"Por que do jeito que falam não é pecado?"

"Eu suei na minha vida, senhor Gilberti, suei mesmo, pra chegar onde cheguei. O senhor é meu amigão agora, apesar aí que o senhor pensa que me dá mais prazer me machucar. Merda!"

"Você fala palavrão com uma naturalidade que eu..."

"O senhor é uma frutinha meio jeca. Por que veio me procurar. Eu já não lhe disse que terminamos duas horas depois de termos nos conhecido?"

"É mas você falou que eu podia vir, não falou?"

"Putz, por que fui dar meu endereço, meu!"

"Não se preocupa não, eu...eu...sou do seu clã."

"Que do meu clã o quê. O senhor é uma frutinha das mimadas, e está podre."

Gilberti saiu correndo do hotel, chorando. Não, desta vez ninguém iria atrás dele, Suprema não iria atrás dele; isso era coisa do outro século; sentia-se um retardado. Entrou em um bistrô, e a música de fundo o emocionou ainda mais. Uma vozinha feminina e metálica cantava: "... tristeza não tem fim, felicidade sim..." Se tristeza era emoção como certa vez Appolonia lhe falara, então a música podia muito bem ser "...emocion não tem fim, felicidade sim..." Pediu um refrigerante diet, copo com gelo e uma rodela de limão. Águeda o livrara de tantas situações embaraçosas, livrara-o certa vez da morte. O garçom, Gilberti contou, chamara-lhe de senhor desde que entrara no bistrô, mais de cinco vezes. Não adiantava ele falar "não me chame de senhor" ou "senhor não, você, está bem?", não, não adiantava. Sem voz nem vez, Gilberti tomou seu refrigerante enquanto observava as pessoas sentadas, tagarelando sem limites, felizes. Claro que Águeda estava bem, que Appolonia estava bem; elas estavam. Foi embora sem pagar, e o garçom saiu correndo atrás dele, gritando "polícia, polícia, prendam esse degenerado!" Safou-se logo ao dobrar uma esquina cheia de jovens, sentindo-se mal no meio da juvenilidade. Lembrou-se de que Águeda achava que ele magoava as pessoas; ela não, ela era a rainha, a justa. Águeda não entendia por que o perseguiam tanto; achava que ele inventava histórias esdrúxulas para a impressionar. Gilberti resolveu ir dormir; jamais seria um bofe deslumbrante. Sem ação não haveria de ficar para sempre. Por volta das quatro, ouviu um envelope deslizar por debaixo da porta.

"Te amo, te amo."

Será que era da faxineira?, pensou. Appolonia riria se ele lhe contasse isso. Ela diria: "Sim, vai ver é mesmo, e daí? Vai ver ela gostou de você." Ué, quem estaria o amando?, pensou. Claro que era engano; imagine se alguém lhe mandaria um bilhete dizendo "eu te amo"! Só se fosse uma pessoa louca. A letra parecia de pessoa inteligente, pensou. Ficou uma hora olhando para o bilhete quando soou a compainha. Era uma entrega: flores! "Você devolve que eu não gosto de flores, ou gosto?" Não, Gilberti não disse nada disso, mas bem que quis. Onde ponharia as belas flores amarelas se não tinha vaso? Uma vez ouvira de uma palhaça o seguinte: "nós temos o dom de alegrar, e o senhor de atrapalhar!." Como essa gente de teatro parecia evoluída, pensou. Gilberti sempre seria tímido, e o que é pior, nojento. Na certa a pessoa que enviou estas flores vai querê-las de volta, pois se trata de um engano, pensou. A campainha soou de novo. Do olho mágico dava pra ver, era Suprema.

"Suprema, vá embora!", gritou Gilberti.

"Suprema? Ah, seu fracote, adeus!"

Noite, início da noite. Um choro preado por forças desconhecidas agora jazia pra acordar na outra noite, pra ser de novo preado. Que ciclo interminável naquela primavera onde mesmo assim ele sintonizava o amor, a alegria de viver, às vezes, abarcando todo o Universo. Não falara sobre o que realmente lhe incomodava, sobre os planos de ações prementes. Mas agora ali sentado, defronte da máquina de escrever, ele de repente achou que mandar tudo à merda fosse possível. Vamos embora daqui, uma vozinha lhe dizia, vamos embora deste lugar, desta cidade, deste país. Que bom estar em sintonia com alguma coisa que conforte. E o sono vinha, ele dormia e sonhava que voava veloz por sendas estreitas entre sepulturas de azulejo. Estranho, nunca fora de atalhos. Eu te amo, eu te amo tanto, eu sussurrava, mas ele não me ouvia. Após dançar sem pensar em limites para tal, trocou de roupa, mas sentiu-se exausto e voltou a dormir. Coisa rara encontrar pessoas sempre eufóricas, pensava. Desta vez sonhou que estava em uma embarcação, e que o mar era tudo, o mar era de rosas. Quando acordou o mundo lhe parecia outro; olhou da janela onde podia-se ver uma igreja, e lá estava o padre, defronte dela, dançando um sambinha..."tristeza não tem fim, felicidade sim..." Saiu do quarto, e na recepção gritou bom dia. Descobriu que havia uma nova lei onde era proibido parar de dançar nas ruas. Então o populacho desconhecido ia dançando para o trabalho, e dentro dos subviários também se dançava. Podia-se dançar até com o mindinho, mas nunca parar. Eu queria tirá-lo daquela estado, mas não sabia o que fazer. Foi quando tive a ideia de dar-lhe um murro. Foi o que fiz, não sei como. Quando deu por si, levantou-se tentando voltar à dança, mas algo nele havia mudado. Agora ele percebia minha presença.

"Quem é o senhor?"

"Estou espionando você há muito tempo. Mas você nunca me percebeu."

"Sim, eu o percebi, eu já o vi em algum lugar. Parece um artista..."

"Não, não sou artista."

"Mas o que o traz até a mim, e por que esse murro?"

"Para você acordar. Sou escritor e no livro que estou escrevendo você é o personagem principal. É a história de um bastardo mediocrérrimo que chega aos cinquenta sem nada, sem perspectivas, achando que para os outros os tempo passa mais devagar, achando que os outros têm trinta e cinco há anos."

"O senhor também deve ser um nada, um escritor medíocre, pois acho que sei que não tem nada publicado. Acho que é aspirante a escritor que ou fica se lamentando pelo que escreveu ou lamentam pelo senhor. Se quer ser um deveria ler mais, estudar mais português."

"Hum...Que tal irmos para minha casa de praia? Ficamos lá um bom tempo e depois voltamos."

"Será que eu posso confiar em um desconhecido?"

"Claro, claro. Sou menos desconhecido do que a maioria que você conhece. Sei da sua vida mais do que você."

Descemos a serra até o litoral. Gilberti não cria ainda que viria o mar de perto outra vez, talvez a última. Emprestei-lhe uma das sungas que levava, uma violeta, e ele não gostou nada nada. Estava, afinal, tendo seu momento de glória, com direito a gostar ou não gostar. Indagou por que eu escrevia se era tão árido intelectualmente. Não lhe disse nada, ficaria em silêncio até chegarmos, conduzindo meu carro a mais de oitenta.

"Por que o senhor está correndo tanto?"

"A vida exige inteligência e velocidade. Para você vinte anos se passaram em uma noite, você que não se acha maduro nem nada."

"Me acho maduro sim, até podre, se quer saber. Mas...mas pare de correr tanto, assim vai nos matar."

"Ah, ah, veja, lá embaixo está o mar. No mar está a oceânide. Você sabe o que é oceânide?"

"Não."

"Ninfas."

"Eu...eu sinto muito, mas quero que o senhor pare o carro. Vou descer, voltar a pé. Não sei por que fui aceitar esta aventura; acho que só pra ver de novo o mar, o horizonte, as pessoas saudáveis passeando com seus filhos pela praia. O senhor deve ser mais louco do que eu porque fica falando em ninfas. Afinal, não creio que elas existam. Talvez ninfas e sereias não sejam a mesma coisa; não sei, sinto que sou ignorante. Não, não acredito, o senhor está acelerando. Duzentos por hora?"

"Se o carro cair no precipício, você pula antes, não pula?"

"O senhor não está falando sério, está surtando."

O carro derrapou e voou precipício abaixo. Não sei como me salvei, talvez porque o carro não explodiu. E quanto a Gilberti, eu nunca mais soube dele, ele desapareceu. Estávamos a uns trinta minutos do litoral, mas mesmo assim a queda foi braba. Não fui assassino, é que ele me enervava. Agora, olhando para o horizonte, penso que talvez ele esteja com as ninfas, lá no fundo. Acho que foi a última coisa que conversamos, sobre elas. Acharam a carteira dele, e lá, além de uns poucos cartões (de crédito não, é claro), havia um poema escrito em papel de pão.

Eu também não queria, mas queria,
E vagar pelo mundo me assustava.
Sem forças, sem alento, eu era fria,
E me tocando ainda quente lava.

Pedi-lhe a mão para saírmos juntos,
Mas como sempre ela me foi negada,
E aos berros...será que eu era um defunto?
Então fiquei sozinho com as fadas.

Ocioso, só mesmo um choque elétrico,
O tempo passaria para sempre,
Teias me cobririam, final tétrico.

Mente plasmando qualquer coisa feia
com argila de medo e de luxúria.
Pedi perdão por ter causado peias.

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