Tema 197 - TEMA LIVRE
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MARIA
Eduardo Selga

Antes mesmo de iniciarmos o relatório à Autoridade Superior, o texto propriamente dito, imperioso se faz esclarecer que, por motivos que respeitam a ética protocolar e almejam, por deliberação prevista em lei, salvaguardar a precária imagem da Cidadã Inacabada que aguarda na fila de espera pelo Suicídio Constitucional, ela, cujos piores fragmentos duma existência que não chega a ser vida se manifestam neste trabalho, ela, que colaborou muito conosco, os pe squisadores oficiais do Ministério Cidadania Viva, terá por pseudônimo Maria. Simplesmente. A razão do batismo está longe do gratuito, importante lembrar: gerações mais contemporâneas à parte, de modo geral esse nome ainda é substantivo próprio amplamente disseminado em Terras de Cá, sobretudo na base da "pirâmide social", eufemismo engraçadinho e criação da academia para designar os perdedores, essa corja. E nela, na assim chamada "base", se arrasta o infortúnio absolutamente natural dos Inacabados. Dentre eles, Maria. Feitas essas ressalvas que nos parecem necessárias, e também à guisa de preâmbulo, vamos ao caso.

Mesmo com a certeza de que os cavouqueiros não poderiam me ver, e nem tanto assim por eu estar atrás de muitos tonéis altos e largos, o medo ainda me assustava. Talvez porque a distância fosse somente razoável. Mas eu tinha ciência do meu estado, de minha continuidade. Apesar de. Enxergava bem todos eles pingando suor debaixo dum sol carrasco, ao mesmo tem po em que esburacavam a terra seca. Gargalhadas, mentiras cabeludas, algum colega ausente era a vítima, talvez. E assim fazer o tempo passar. Pretendiam ir embora antes que a lua anoitecesse a vida neste mundo no qual as pessoas só existem ao dia, porque a noite é tomada pelos cães de olhos vermelhos, pelo desespero, pelos mendigos, pelos canibais das periferias, pelos analfabetos ou pouco escolarizados que se perderam no caminho que levava à escola. Eles sem nenhuma chance na vida. Como eu jamais tive. Enquanto isso, longe, deitado na pá da retroescavadeira, pernas abertas, o operador lançava círculos de fumaça no ar com um charuto escandalosamente grande. Vez por outra a boca se enchia de saliva, e então escarrava nos centos corpos amontoados em frente à máquina. Dentre eles o meu. No buraco da testa (usei uma semi-automática) sangue seco e varejeiras. O apodrecimento a caminho. Ao lado daquela espécie moderna de dragão, animal um tanto lenda e outro tanto estória para cri ança dormir, outros muitos cadáveres. Toda a safra do mês estava ali, os que não suportamos o peso da vida, da inexistência em vida, as pressões, rótulos, cobranças. A falta de tudo por sobrevivermos na margem.

Seu uniforme sempre com remendos, quase nunca a merenda, nos primeiros anos uma vontade enorme de adquirir conhecimentos, embebida na velha ilusão de que o saber é o caminho, a verdade e a vida, a chave para a fuga daquela miséria. Essas singelezas próprias da meninice, risíveis, que nosso querido Império, Terras de Cá, estimula com maestria. Foi no quarto período de escola que ela começou a perceber o tamanho do peso que é existir sob a letra de nossa Carta Magna, tanto mais se quem se aventura no meio de nós apresenta crioulice. Era o caso dela. Horrorosa, verdadeira ofensa a qualquer boa estética, os outros alunos, a maioria, conseguiram estigmatizá-la de tal modo que durante a entrevista percebemos nítidas as estacas profundas fincadas desde aquele tempo, para ela terremoto. Foram dias vesúvios para "Neguinha do Capeta", "Beiçuda", "Cabelo Farpado"... Mas nós, senhor, os pesquisadores oficiais do Ministério Cidadania Viva, em nenhum instante sentimos a fraqueza típica dos Cidadãos Inacabados, a chamada piedade, é preciso dizer. Antes, muito antes mesmo, orgulho pela percepção de que nosso Estado é muito competente na triagem dos melhores indivíduos para o usufruto de suas benesses. Se lhe era impossível suportar o ridículo do qual era objeto (muito legítimo, era apenas uma negra), não merecia prosseguir. Nenhuma surpresa ao solicitar o alvará de suicídio, consequentemente. Os fracos. De nossa parte, também, o velho espanto: esses inúteis não percebem que a escola fornecida gratuitamente pelo Império, longe do que supõem ser, é malha fina, é lugar reservado ao adestramento psicológico (a que alguns os raros insurretos teimam denominar "tortura chinesa"), necessário à escolha dos mais aptos. Não está óbvio para eles que nada de graça é de graça. Impressionante. Acéfalos. A vala comum é mesmo a melhor moradia para eles.

Um homem, distintivo no peito, então ele trabalhava para o Império. Barba feita, cabelo rente, nenhum sorriso ou simpatia, jeito de andar que lembrava talvez um boneco. Apareceu como se fosse uma aparição.

_ Trabalho encerrado. Vocês agora só no mês seguinte, quando os novos suicidas. Sigam todos por ali a caminho da tesouraria, receber a esmola... Digo, o salário. Moedinhas no bolso, não quero ver mais suas caras pretas antes de trinta dias.

Após o término do discurso curto e grosseiro, o sujeito saiu apressado do aterro sanitário. O operador abandonou a cama improvisada, saiu da pá, preguiça e tanto, entre os lábios ainda algum charuto amarrotado. Equilibrando-se sobre os cadáveres, em direção à traseira da máquina. Longo bocejo enquanto isso. Corrente e cadeados de modo que um corpo foi preso a outro e, no fim (ou no início?) dos elos pendurou o último defunto (ou o primeiro?) na escavadeira, pelo pé. Alguns goles duma bebida que ele escondia em seu bolso, a língua estalando no céu da boca. Arremessou longe a guimba, acendeu outro charuto imediatamente. Puxou e soltou o ar com força, o tédio no rosto como se fosse um traço natural da fisionomia enquanto passava uma das mãos no cabelo em pé.

Disse-nos ter tomado a decisão de abandonar a sala de aula (e a sociedade não perdeu nada com isso) por não conseguir responder às insistentes ofensas, que faziam dela um Judas em Sábado de Aleluia, humilhada a ponto de se enterrar no primeiro buraco, se fosse possível, ela nos disse. Tão coitadinha... Mas o abandono não foi atitude resolvida em apenas um ato, e sim vários que, aritmeticamente, somaram-se. Por alguns dias a rotina mesma de sempre: a carcaça desnutrida no uniforme puído, embornal a tiracolo, caminhou rumo ao colégio. Entretanto, numa segunda-feira, Maria nos arredores do edifício, o sentimento de malogro. Fragilid ade. Pompeia quando morreu. Choro e trêmula, como vencer o portão, a entrada? Manteve-se a uma distância razoável, de modo que pudesse ao mesmo tempo silenciar o medo e observar os colegas no pátio formando a ordem unida e cantando o hino nacional para entrarem nas salas. Silenciosamente.

_ Doía, seus moços... Dói.

Mas não voltou para casa, ato contínuo: sem destino por horas, pelas imediações até anoitecer, de quando em quando sentava no meio-fio em frente ao colégio. Seus livros e papéis. Escrevendo no caderno de "comunicação e expressão" palavras amargas e doces, apenas na roupagem semanticamente desconexas entre si. Esse costume, ele jamais a abandonou. Pelo contrário, adquiriu volume: mantém garranchos esparsos e sem critério à guisa de diário, mas sempre textos muito breves e inconclusos porque a urgência de converter em palavras as raras cenas marcantes do seu cotidiano é logo obstruída pela irrevogável certeza de estar perpetrando todos os pecados gr amaticais. A vergonha do pouco estudo, com razão: para aguentar-se firme em nossa sociedade é preciso escrever obedecendo aos manuais.

_ Eu murchei, moços. Sempre quis os segredos da palavra escrita... Mas... não tinha que ser mesmo. Destino, sina, essas coisas malditas que Deus permite. Por isso também, junto com a miséria e o desemprego, peço a autorização para o Suicídio Constitucional.

Subiu na cabine, deu a partida no motor barulhento, fumaça, empurrou os corpos logo à frente (dentre eles o meu, apodrecendo, a fornalha do sol), arrastou alguns que estavam presos na traseira pela corrente. Todos depositados na vala, a máquina nos cobriu com a mesma terra que os homens haviam remexido. Eu, escondida atrás de alguns tonéis, tentava aprisionar no bloquinho de anotações, que um dia foi parte do meu querido e esquartejado diário (mesmo bem antes das últimas horas já não lembrava onde estavam esquecidas as outras partes), aprisionar no bloquinho todos os po rmenores do enterro coletivo, mas... inferno! As mãos atravessavam o lápis, o caderninho! Sei que meu estado é alma, é fantasma, mas sempre tive comigo a esperança de ao menos alguma alegria que não tive me acompanhasse. De que adianta (alguém ouve esta pergunta, será?) trazer meus molambos para além-túmulo se as palavras não podem vir?

Senhor, a formalidade decreta encerrarmos por aqui o relato que a nós coube redigir. Não obstante, intrigou-nos sobremaneira o fato de Maria possuir ótimo conhecimento genérico, vocabulário muito além do medíocre e excelente discurso oral, em que pese a escolaridade precária. Interrogada sobre isso, disse ter sido fruto de sua experiência enquanto doméstica em lares da nossa mais perfeita elite. Experimentou cânones da literatura mundial e textos jornalísticos, conheceu pessoalmente vários intelectuais. Com todo o respeito merecido, senhor, receamos estar diante duma pequena rachadura em nosso amado Império Terras de Cá. Por certo el a espreita a melhor oportunidade para erodir perigosamente, fazer-se cratera. Por isso, zelosos, gostaríamos sugerir à Secretaria de Exclusão Social aprimoramento de suas ferramentas e estratégias de maneira tornar inexequíveis exceções semelhantes à Maria.

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