Tema 197 - TEMA LIVRE
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UM ANJO DE OLHOS AZUIS
Eva Ibrahim

A mulher empurrava a cadeira de rodas enquanto seu marido segurava o torpedo de oxigênio, que estava ligado á máscara no rosto da pequena criança. Seguiram até a varanda onde havia uma cadeira para o homem sentar-se; ficariam ali por duas horas. O menino precisava tomar sol, ordens médicas. Semideitado na cadeira estava Saulo, um garoto de sete anos e grandes olhos azuis; estava paraplégico e agora ficara dependente de oxigênio. Era a terceira vez em quatro anos que os médicos autorizavam sua ida para casa; uma nova tentativa de tira-lo do Hospital.

Rosaura, a avó, dava o melhor de si, procurava cuidar como as enfermeiras, as vizinhas também ajudavam. Havia um comprometimento da rua inteira em colaborar com o casal para o bem estar do menino. Procurava limpar e manter tudo arrumado na casa simples, pois certamente o pessoal do Hospital viria ver como estava o paciente. Ela estava nervosa, será que daria conta de cuidar do menino e do torpedo de oxigênio? Baixou a cabeça e uma lágrima correu em seu rosto, amava aquela criança de todo coração, mas, não tinha estudo, era do mato e temia piorar a situação. Antonio, coitado, sabia menos que ela e temia tocar na criança, ao menor movimento ele chamava a mulher.

Enquanto o avô e o neto tomavam o sol da manhã, ela pensava em adiantar o almoço e lavar roupas. Da cozinha dava para ouvir a conversa na varanda, era a vizinha que viera oferecer ajuda. Rosaura enxugou as lágrimas que teimavam em embaçar seus óculos e pensou em sua filha, a mãe do menino, que há muito não dava notícias. Depois que se casara esquecera da família.

A moça, agora com pouco mais de vinte anos, ficara morando no interior da Bahia com a avó, enquanto os pais iam á São Paulo em busca de ajuda. Com uma carta do médico do interior a mulher conseguiu internar a criança em um grande Hospital especializado naquele tipo de doença, há quatro anos atrás. Foram morar na periferia da cidade, Antonio arrumou emprego de jardineiro em uma mansão e sua mulher passava a maior parte do tempo ao lado do neto.

Zélia, a filha de Rosaura e mãe do menino estava com quatorze anos quando teve uma infecção em um dente e sua mãe não sabia o que fazer; moravam na roça, no interior da Bahia. A mulher dava á ela os remédios que tinha em casa, sem saber direito para que serviam. Remédios do marido, da sogra e dela também, tentando curar a dor da filha. Mas, ela não sabia que a filha estava grávida e quando descobriu ficou desesperada, pois tantos remédios iriam fazer mal á criança. O responsável pela gravidez desapareceu e a menina levou a gestação adiante, com a ajuda e ansiedade da mãe.

Nasceu um lindo menino, louro de olhos azuis, um anjo dizia a avó. No começo parecia uma criança normal, começou a andar com um ano de idade; era alegre e sorridente. Rosaura estava aliviada e cuidava do neto com muito amor. Ele era esperto e inteligente, andava de bicicleta e conversava muito com todos. Certo dia, já com quase três anos, Rosaura colocou Saulo em pé e ele sentou, desesperada e com tantos fantasmas rondando sua cabeça tentou outras vezes, sem sucesso. O menino não andava mais e ela procurou o médico da pequena cidade. Queria que ele confirmasse se foram os remédios que estavam agindo na criança. Ele dizia ser impossível dizer, ela teria que procurar um Hospital especializado na capital.

Deixou a filha com a avó e seguiram para a cidade grande; tinha um compromisso assumido com Deus, tentar curar aquela criança que tomara para si como filho. O menino foi piorando e seus membros inferiores perdendo as forças, depois começou a falta de ar e a necessidade de oxigênio. O menino gostava de conversar e ouvir histórias, que a avó contava; sorria por detrás da máscara. Durante quatro anos ela permaneceu como acompanhante do neto. Conheceu uma mãe que tinha um filho com um problema parecido e passaram a se revezar, uma ia para casa e a outra cuidava dos dois meninos.

Os médicos chegaram á conclusão de que era um problema genético que a criança desenvolvera e não tinha nada a ver com os remédios que sua mãe tomara, mas Rosaura trazia no peito a angustia da dúvida. A sua entrega á Saulo era total, o marido concordava e assim levavam a vida. Agora o menino estava ali, na casa deles e nas mãos de Deus, dizia a mulher.

Saulo se desenvolvera na cama, comia bem e estava gordo, mas a doença progredia parecendo sufoca-lo. Quando a noite chegou, o menino começou a passar mal, a falta de ar aumentou e a mulher teve que chamar socorro médico; voltaram ao Hospital. Outros seis meses se passaram e novamente estava de volta, era uma nova tentativa; ela chorava, estava cansada e temia desanimar.

No dia seguinte, Rosaura estava sentada ao lado da cama de Saulo, que dormia como um anjo. Enquanto ela suspirava pedindo ajuda aos santos, bateram na porta; era a vizinha da casa ao lado que a ajudava com o menino. Célia chegou abraçando a amiga, solidária com sua dor.

Conversavam baixinho para não acordar Saulo e a moça disse á amiga que estava fazendo uma excursão para a cidade de Aparecida do Norte. Rosaura respondeu que gostaria de participar, mas devido ás circunstâncias seria impossível. A vizinha abraçou a mulher e perguntou se ela quisesse fazer um pedido especial ela levaria aos pés da santa. A mulher surpresa disse que jamais pediria para Deus levar aquela criança, não agüentaria ficar sem o seu anjo de olhos azuis e duas lágrimas correram em seu rosto.

Saulo, que havia despertado com a conversa olhou para a moça e disse:
"- Você vai morrer antes de mim". Sorriu e fechou os olhos novamente. Célia, surpresa, respondeu que não, era jovem, cheia de vida e pretendia passear muito, mas, uma ruga de preocupação surgiu em sua testa. - O menino estava tão debilitado, como poderia saber? Pensou a vizinha preocupada. Saulo foi levado novamente, agora, ele vivia entre idas e vindas ao Hospital; os médicos avisaram que nada mais poderiam fazer pelo menino.

Os dias foram passando e a situação continuava a mesma. Rosaura procurava fazer o melhor e os vizinhos a ajudavam como podiam. As duas mulheres não se lembravam mais daquela conversa.A excursão saiu ás duas horas da manhã e Célia levava o pedido da amiga para a Santa ajudar na recuperação de Saulo. A viagem foi tranqüila, chegaram a tempo de assistir a primeira missa do dia, na Basílica de Nossa Senhora Aparecida. A peregrinação ocorria tranqüilamente e a saída estava prevista para o anoitecer.

Foi um dia muito cansativo e os passageiros entravam no coletivo e logo recostavam para dormir.O ônibus chegou á São Paulo e pararam em um semáforo, quando apareceram dois homens armados apontando a arma para o motorista dizendo para abrir a porta. Entraram no coletivo acordando os passageiros e promovendo o pânico entre eles. O motorista foi obrigado a estacionar o veículo em uma rua escura.

Célia não se conformava em perder as suas coisas daquela maneira e começou a falar alto.Um dos bandidos estava visivelmente nervoso e mandou que se calasse. Ela não parou, estava histérica. Houve gritos e crianças chorando, quando em meio aquela balburdia ouviu-se um tiro. O silêncio tomou conta do lugar, mas alguém gemia baixinho. Célia fora atingida com um tiro no peito. Sangrando muito precisava de socorro urgente, mas, todos estavam acuados e mudos; tinha que esperar. Longos minutos se passaram até que os bandidos deram-se por satisfeitos e deixaram o coletivo. Rapidamente alguém que conseguira salvar seu celular chamou a polícia, dizendo haver feridos no local.

Quando a Ambulância e a Polícia chegaram para socorrer á vítima ela já estava em óbito.A notícia chegou como uma bomba na rua onde a moça morava. Quando Rosaura soube da morte da amiga lembrou da previsão do menino. Saulo previra a morte de Célia, ninguém acreditaria e a mulher resolveu guardar para si aquela conversa; estava assustada.

Que ele era um anjo ela sentia e certamente teria contato com poderes superiores, mas ela pouco sabia sobre essas coisas. A mulher pressentia que ele estava ali só de passagem; aquele garoto não era seu, mas de Deus.Durante seis meses ela guardou aquele segredo da previsão que ele fizera, temia que pensassem que estava louca. Um dia o menino chamou por ela e disse que chegara sua vez, logo partiria também. Seu tempo acabara; piorava a olhos vistos. Rosaura chorava muito, não podia imaginar sua vida sem ele.

Foi internado novamente e a avó passava o tempo todo ao seu lado. No terceiro dia o menino parecia dormir e a mulher encostou a cabeça na guarda da cama e cochilou, estava exausta. Quando abriu os olhos e viu o neto inerte, gritou pela enfermeira. Enquanto a equipe médica examinava a criança, alguém a afastou dali. Rosaura começou a chorar, seu menino a deixara e ela assustada procurava aceitar a vontade de Deus.

Saiu com as mãos abanando, representando o futuro de um mundo vazio. Como seria sua vida sem o menino, voltaria para o interior? Precisava muito de Deus naquele momento, a mulher estava vazia de sentimentos, sua dor a amortecia; saiu andando sem rumo.

Num outro plano, onde não há dor, nem sofrimento, na casa dos anjos, Rosaura iria encontrar-se com Saulo; era só uma questão de tempo, pensou a mulher olhando para o céu. De repente uma grande paz invadiu seu coração; seu anjo estava com ela, para sempre.

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