Tema 197 - TEMA LIVRE
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A FLOR QUE MEUS OLHOS NÃO QUISERAM ESQUECER
Marcelo Moraes Caetano

Fazia um calor ameno sobre a velha rua da cidade. As pedras colocadas há muitos séculos por mãos escravas arejavam o pavimento com pequenas gramíneas que lhes nasciam no entorno. Eram ruas de pedra, mas não tinham absolutamente a dureza pétrea que um clichê desatento ou insensível poderia tentar impor-lhes. Porque eram ruas de pedra lubrificadas por ervas, gramas e flores minúsculas e delicadas. Dois reinos da natureza - o mineral e o vegetal - casados, germinando um elemento de mistério e silêncio.

Essa clareza, mesmo à noite, sob os antigos lampiões a gás, ora iluminados por anacrônicas lâmpadas elétricas, dava às ruas da cidadezinha um aroma antigo, um cálido aroma antigo, um nostálgico aroma antigo, à moda dos cavalheiros e das damas de porcelana que se tem, amiúde, sobre cristaleiras indianas de madeira e madrepérola. Eram ruas feitas de pedra, mas que negavam a matéria-prima impudicamente: até para pisá-las era preciso cuidado, ou se quebraria o bibelô que lhes tornava os pedregulhos pequenos verdadeiros biscuits torneados a mão, um delicado e gentil par de mãos artesãs.

Três horas da madrugada. Os cães dormiam (já haviam desistido de todos os gatos). Os gatos escondiam-se tão bem entre os telhados e os muros, que se tornavam invisíveis. De vez em quando um apito bem breve e baixo dava o sinal da tranquilidade, que, portanto, deixava de ser discreta e lembra va a todos, contundente, o quanto era importante. E sumiam-se por dentro de uma viela de pedra, a tranquilidade, o guarda, seu apito e o cassetete que já nascera aposentado.

Em uma ou outra calçada se viam cadeiras, reminiscências das conversas que o dia ouve e produz. Eram cadeiras mortas, então. Cadeiras sem ninguém não passam de folhas ao vento. E se vão. Havia também alguns brinquedos sem criança.

Todas dormiam.

Algumas davam trabalho; outras, nenhum. Dormiam todas, entretanto. Algumas janelas ficavam abertas para deixar o vento entrar. Escapavam delas cortinas gázeas de algum tecido bem diáfano, que nem sequer devia ter nome, pela sua essência de alma feliz.

E, por sinal, havia também almas andando pelas ruas. Silenciosas, algumas; brincalhonas, outras; melancólicas, solitárias; alegres, aos pares ou grupos. Almas dos antigos da cidade. Antigos prefeitos, capitães-mores, delegados, juízes, escravos, escravas, capatazes, sinhás, sinhôs, crianças , avós, boticários, barbeiros, comerciantes: hoje todos iguais e conversando sem Vossa Mercê, Excelência, Doutor... Nada: apenas almas igualadas pela mesma terra e pelo mesmo ar, indiferentes às matérias-primas de suas lápides ? mármore? granito? madeira? barro?

Tudo igual. Almas passeando iguais, como são iguais início e fim de tudo o que vive.

Eu sou a única pessoa viva a andar pelas ruas a esta hora. A noite me encanta, me seduz e me chama com seus olhos de coruja e seu coração de pérola gigante. A noite me quer. Que posso fazer? Observar em silêncio os seus sussurros, e deduzir dali todas as vidas que a perpassam. Mesmo as almas que desfilam pela noite são vidas que a perpassam, porque a vida nunca se extingue. E eu, que posso fazer?

Já faço. Conheço um pouco desta cidade, mas um pouco, para ela, é muito. É muitíssimo. É tudo. Porque nesta cidade não tem muito o que saber. Quem sabe um pouco, então, já sabe tudo. Sei que a mulher daquela janela aberta, com um contorno amarelo desbotado, não ama seu marido e quer trocá-lo pelo entregador da farmácia e seus dezesseis anos de idade.

Sei o quanto dói àqueles pais da casa de porta roxa saberem que seu filho mora tão longe, numa cidade perversa, grande e malévola.

Sei que as duas senhoras que moram atrás daquele portão de grades verdes são as últimas que conhecem o segredo antigo dos rendilhados de linha feitos a mão.

Sei o tamanho do sonho daquele menino de varanda branca. Conheço as vontades secretas da menina da casa azul. Conheço também a mãe do guarda que apita por trás do muro baixo de hera com gerânios e violetas.

Paro diante da igreja e observo (o que mais eu posso fazer?) duas almas de mãos dadas entrando para rezar. Pode ser que haja uma missa exclusiva para as almas às três da manhã.

Pode ser que a alma de algum padre celebre o banquete de Cristo e as almas paroquianas comunguem da eucaristia cheias de fé e devoção. Quem saberá o que faz es sa procissão de almas com véus e velas entrando na igreja àquela hora?

Por que velam?

Quero participar, mas sei que não fui convidado: não tenho o privilégio delas. Então, muito delicadamente, em completo silêncio, abaixo-me. Entre as pedras do pavimento da rua, pequeninas, arredondadas e com o desgaste da erosão dos séculos que as enche de brilho, como pequenas pérolas brutas, retiro a mais branca flor que vejo nascida entre as frinchas da rua.

É tão branca, tão branca, que retine à luz do luar, e as almas em procissão se viram para mim, vendo-me pela primeira vez. Uma ou outra cochicha algo, certamente estranhando a minha presença que, só agora, elas perceberam, e que soa errada naquele instante e naquele lugar.

Vou até a porta da igreja. As almas estão assustadas comigo. Estão? Não me reconhecem, mas eu sou um filho da cidade, como elas.Pouso a miúda flor sob o degrau da igreja.

Vou embora. Está muito tarde. Quero dormir.

Talvez amanhã a mulher da janela amarela desbotada tome uma decisão e se separe logo do marido. O garoto da farmácia não há de querer esperar muito. Garotos são afoitos. Sonhos são famintos. Saudades falam alto.

Desejo que tudo aconteça enquanto é tempo. A minha parte - eu farei.

Espero que aquela flor que eu sacrifiquei, espero que seu sacrifício tenha valido a pena...

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