Tema 197 - TEMA LIVRE
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ÍNDIOS E CICATRIZES
Maria Luísa Rocha

Maio chegou como um raio, trazendo um friozinho irresistível que obrigava Adélia a preparar um chocolate bem quente assim que a noite invadia o pequeno apartamento onde morava com sua irmã Zélia. As duas sentavam-se bem agasalhadas e nos pés apressavam-se em colocar grossas meias de lã. Seguravam as xícaras com cuidado, procurando saborear vagarosamente a bebida escura para prolongar o prazer de se aquecerem em frente à televisão. Quase não conversavam mais. Já não tinham muito o que falar, tal a mesmice de suas vidas simples.

No início do outono, um fato novo aconteceu. Adélia resolveu colocar uma prótese nos peitos agora murchos e caídos, disposta a enfrentar os riscos da cirurgia e as prestações do hospital. Desde a juventude, ela detestava os pequenos e flácidos seios e, mesmo sendo magra, preferia usar roupas largas, numa tentativa inútil de disfarçar sua deficiência anatômica. Durante anos, quis mudar a situação, mas sempre adiava, por medo e também pela constante dificuldade financeira. Finalmente, após quase vinte anos de indecisões e expectativas, o sonho estava prestes a se concretizar.

O resultado ficou excelente. Sua irmã Zélia, muito feliz, correu para comprar duas blusas lindas, uma de florais e a outra de um tom azul bebê, com alças fininhas. Queria ver a irmã mais feminina, mais solta. Tudo seria melhor daqui para frente. Quem sabe poderia até arrumar um namorado?! Mas, estranhamente, Adélia não ficou satisfeita. Implicou com as cicatrizes e não aceitou as explicações de que, com o tempo, elas iriam afinar e clarear. Fazia ouvidos de mercador e não parava de resmungar e reclamar, atormentando-se e irritando quem chegasse perto. Os peitos novos foram para segundo plano e, à frente, como um dedo acusador, as cicatrizes.

A primavera chegou sem ipês amarelos, somente um sol incandescente e temperaturas elevadas. Zélia adoeceu e marcou consulta no posto de saúde. Após um exame detalhado, o médico descobriu um caroço em seu pescoço. A biópsia confirmou a suspeita: era um câncer na tireóide. Seria necessária uma cirurgia urgente para extrair o tumor e a tireóide.

Zélia foi operada e voltou para casa em dois dias, sem a doença, porém com uma extensa cicatriz. Três meses depois, o verão invadiu a grande cidade e o calor insuportável parecia querer derreter tudo e todos. Um verdadeiro inferno. Zélia passou a usar um lencinho amarrado no pescoço, porque não podia tomar sol nesta região. Sua cicatriz era avermelhada e em alto relevo, mas isto realmente não a incomodava. Às vezes, punha um lenço maior cobrindo a cabeça e o pescoço e transformava-se em uma doce muçulmana.

E os dias iam passando. As duas irmãs tiveram que aprender a conviver com as cicatrizes, mas cada qual tratava a sua de uma maneira. Adélia, cada dia mais infeliz e revoltada, queria processar o médico; só falava em vingança e em indenização. Sua cicatriz escondida já estava mais fina e clara, mas a mulher, nesta estranha cegueira, só tinha olhos para uma deformação que criara e que teimava em manter. Zélia tentava consolar a irmã, dizendo que sua cicatriz era oculta, que ninguém estava vendo e que não era proveniente de doença. Argumentos inúteis para a enlouquecida mulher.

Zélia então resolveu tomar uma atitude. Jogou os lenços fora, cortou os cabelos bem curtinhos e passou a sair com a cicatriz totalmente à mostra. Vermelha, grossa, quase um insulto. Os olhares eram inevitáveis, ora penalizados, ora cheios de nojo.

Os mais atrevidos e curiosos perguntavam-lhe o que havia acontecido. Zélia, com bom humor invejável, respondia que sofrera uma tentativa de homicídio.
Dava gargalhadas ao ver as caras horrorizadas dos ouvintes. Não conseguia parar de inventar histórias escabrosas.

Dezembro finalmente chegou, trazendo um Natal chuvoso. As duas irmãs comemoraram a data sentadas em frente à televisão, comendo inúmeras rabanadas, acompanhadas de guaraná bem gelado..

Uma vizinha tocou a campainha e pediu um pouco de gelo. Levou um susto ao ver a cicatriz de Zélia que se levantara para atender a porta:

- Credo, Zélia, que foi isso no seu pescoço? Zélia não se conteve diante de tanta invasão.

Inventou uma longa história em que ela foi atingida por uma pipa com cerol na linha que quase a decapitou. A mulher ficou petrificada, atônita, muda... E saiu de fininho sem levar o gelo. Perto da janela, Adélia observava a cena totalmente alheia e com cara de choro. Não reparou que já era quase meia-noite. Os sinos da igreja da pracinha tocavam alegres e no ar havia um cheiro engordurado de carnes queimadas misturado a vozes e músicas estridentes. Mais parecia uma festa de um time de futebol vencedor do que uma comemoração do nascimento do pequeno Menino.

Há muitos anos atrás, quando as duas irmãs ainda eram crianças, o Natal tinha outro significado, bem diferente dos dias de hoje. Para a ceia, a mãe preparava uma macarronada caseira coberta por um grosso molho de tomates madurinhos e o queijo era colocado fartamente por cima da travessa na hora de servir. Um frango assado na cerveja acompanhava o arroz de forno e a sobremesa não poderia ser melhor: um grande pudim de leite com calda de ameixas pretas. As meninas acordavam bem cedinho e corriam para ver o que Papai Noel havia deixado nos sapatinhos colocados perto da árvore de Natal. Os olhos brilhavam e os corações disparavam de alegria. O bom velhinho sempre atendia aos pedidos das cartinhas.

Sem dúvida alguma, o melhor Natal das meninas foi quando ganharam o Duque, um cãozinho branco vira-lata que se tornou inseparável companheiro nas brincadeiras de índio e caubói com os meninos da vizinhança. Algum tempo depois, acharam um gatinho sarnento com a pata quebrada e o trouxeram para casa. Em seguida, veio o Til, um cachorro cego; mais tarde, uma cadela prenhe que pariu uns três filhotinhos. Assim passaram a infância, rodeadas de animais e de amiguinhos cheios de imaginação.

Quando mocinhas, um terrível choque: a mãe faleceu de repente, dentro de um cinema. Um infarto agudo levou-a, deixando a família totalmente despreparada e indignada com sua ausência. D. Fabíola morreu no dia treze de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima. No Natal do mesmo ano, Adélia foi dormir cedo, muito órfã ainda, após regressar da ceia na casa do tio Geraldo, irmão da mãe.

Na madrugada, sua mãe apareceu em sonhos, e esclareceu que o motivo da visita era um abraço de Natal. Adélia quis saber onde sua mãe estava e ela respondeu que agora vivia com Jesus e com o índio. E partiu em meio a luzes indescritíveis, deixando a filha profundamente emocionada e cheia de medo. No dia seguinte, em conversa com os tios, descobriu que sua mãe era profunda devota de Nossa Senhora de Guadalupe e que o índio chamava-se Juan. Desde então, Adélia transformou-se: comprou uma medalha da Virgem e passou a usá-la no pescoço com uma fina correntinha de prata, rezando incontáveis terços e recitando os salmos que conseguiu decorar.

Vinte anos se passaram depois da morte de D. Fabíola. O pai, seu Afonso, vivia com as duas filhas, cumprindo uma rotina rigidamente estabelecida por ele mesmo. Acordava cedo, saía para um passeio, voltava para o almoço que era sempre o mesmo: arroz, feijão com grãos pouco cozidos, repolho, batatas divididas ao meio e uma colher de carne moída. Deitava um pouco após a refeição, ouvindo as mesmas músicas no rádio antigo, segurando incontáveis cigarros que lhe queimavam os dedos e os pulmões. Levantava-se e fazia uma higiene rápida, lavando a dentadura com uma escova de dente e sabonete e molhando os cabelos lisos e estranhamente negros, talvez por ser herança de uma avó índia guarani, no sul do país. Aos noventa e oito anos, ele teve uma pneumonia e foi para o hospital. Após uma longa agonia de quase vinte dias tentando desesperadamente não ir embora - verdadeira rocha - seu fim se aproximou. No momento de sua partida, alguma coisa foi revelada em seu leito de morte, algo muito antigo, milenar... Parecia que o rosto do velho homem foi se desfazendo, se desintegrando, qual um pergaminho totalmente amassado, através de um envelhecimento tão rápido que tornava suas feições cada vez mais escuras, ficando incrivelmente parecido com um cacique da época dos incas ou dos maias: a cor sepulcral, o nariz adunco e os cabelos sempre lisos e negros... As duas irmãs não sentiram medo diante de uma visão tão impressionante, apenas olhavam aquele desfazer-se cheio de segredos inexplicáveis que, por minutos, as levaram a mundos totalmente inimagináveis.

Os anos passavam rapidamente. Uma tarde, Zélia chegou a casa com uma tatuagem nas costas: era o desenho de um belo cavalo branco que pertencera ao cacique sioux Touro Sentado. Adélia ficou horrorizada e com a severidade de irmã mais velha aconselhou-a a esconder tal exagero, alertando-a de que já estava bem velha para este tipo de coisa. Coisa mais ridícula. Mas Zélia não se importou. Ninguém iria se meter em sua vida. Aos poucos, começou a cobrir seu corpo de tatuagens: primeiro, foram passarinhos nos braços e borboletas nos pés, depois, gatos na barriga, um elefante na coxa. Finalmente, tatuou uma cobra coral na cicatriz do pescoço e, logo embaixo, com letras vermelhas, mandou gravar: amo os animais.

Meses depois, em um congresso vegetariano, conheceu Antônio, um ex-seminarista comunista que lecionava biologia e colecionava cobras e lagartos. Dizem os fofoqueiros que ele se apaixonou por Zélia porque ela o enfeitiçou através da coral tatuada na cicatriz. Intrigas maldosas...

Casaram-se e foram morar em um sítio arrendado, levando junto com eles alguns gatos, cachorros e os répteis. Ah, também Adélia os acompanhou na nova vida. Ela estava muito esquisita, esquecia-se de tudo e sorria cada vez menos. O casal passou a cuidar dela com a mesma dedicação com que tratavam seus queridos animais.

A vida no sítio era monótona mas feliz. Todos os dias comiam as mesmas coisas nos mesmos horários, andavam pelos mesmos lugares e cada vez falavam menos. Mas havia um dia por mês em que as coisas eram bem diferentes:

Na noite de lua cheia, todos se sentavam à varanda, absolutamente calados, os bichos espalhados por todos os cantos. E ficavam esperando os fantasmas aparecerem... São sempre os mesmos: chegam seminus, cocares coloridos na cabeça, corpos brilhando, negros cabelos lisos, transbordando energia, mesmo cansados da viagem de lugares tão longínquos. E, assim que eles pisavam na varanda, todos se arrepiavam e o silêncio da noite era brutalmente quebrado por gritos de guerra e pelo rufar dos tambores...

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