Tema 197 - TEMA LIVRE
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FIM DE UM VÍCIO
Valéria Vanda de Xavier Nunes

Era mês de férias e como sempre, ela estava apreensiva. Filhos adolescentes são sempre uma preocupação a mais, e quando se tem filhas a preocupação é dobrada. O maior medo de Izadora era que as filhas sofressem influências das amiguinhas e tomassem rumos diferentes na vida. Por esse motivo ela sempre parecera ser uma mãe durona, uma mãe às antigas que não procurav a se tornar "amiguinha" das filhas só para ser moderna. Além de não ter sido educada por pais que falavam de tudo com os filhos, ela acreditava que se não desse brecha para se falar sobre assuntos "proibidos" as filhas não se interessariam por eles.

O amor que Izadora sentia pelas filhas não tinha limites. Era capaz de tudo para satisfazer seus menores desejos, no entanto, nem sempre conseguia demonstrar todo esse amor e carinho que sentia por elas com palavras e gestos carinhosos. Izadora vinha de uma família numerosa em que a mãe não tinha tempo para dar carinho individual a todos os filhos e então ela se tornara também uma pessoa difícil de se expressar por gestos carinhosos. Sempre fora uma mulher reservada nesse aspecto.

*

Aquela não estava sendo uma boa noite para Izadora. Sua filha mais nova tinha saído com amigos para se divertir já que estavam em férias. Ela impacientava-se com a demora da filha e como sempre, o seu coração se apertava de preocupação. Fazia horas que se levantara da cama e fora para o sofá da sala na esperança de que fazendo assim, as horas passassem mais depressa. Mas que ilusão. As horas continuavam passando lentas demais.

Finalmente o barulho de carro na rua. Vozes juvenis e barulho de beijos de despedida. Toda a preocupação maternal se transformou de repente numa raiva incontrolável e sem razão de ser. O alívio de ver a filha sã e salva ao invés de ser motivo de paz e calmaria transformou-se em palavras furiosas de recriminação. Sua filha ficou perplexa, pois não esperava aquela reação de sua mãe por causa de um atraso - para ela - tão normal. Sua mãe nunca tinha agido assim antes. Com toda aquela raiva. Não adiantou nada as suas explicações para o atraso. Sua mãe estava totalmente fora de si e a agredia com palavras ofensivas. A sua bela noite com as amigas tinha terminado de maneira quase trágica. Ela continuava sem compreender a atitude de sua mãe.

*

Mas aquela noite também fora horrível para Izadora.

Passara a noite em claro. Chorando. Tinha sido tão dura com a filha tão amada. Ela também não se reconhecia. Não conseguia entender sua atitude naquele momento. Por que estava tão brava? Não havia motivo para tudo aquilo. Sua filha não merecia aquelas palavras tão cruéis. Estava em férias! Por que ela não poderia passar mais tempo na companhia de suas amigas? Que cuidados mais sem propósito eram aqueles? Para que tanta proteção? Eram perguntas que Izadora se fizera durante toda aquela noite. Ela tinha consciência de que fizera a sua filha tão querida sofrer terrivelmente. Não sabia como a encararia no dia seguinte, como sabia também, que não tinha nenhuma razão para todo aquele dispautério.

Finalmente, ela fora vencida pelo cansaço. Adormecera.

Acordou exausta naquela manhã. Uma fria e cinzenta manhã de Julho. Ainda sonolenta, levantou-se da cama e preparava-se para ir ao banheiro fazer sua hi giene pessoal quando ao virar-se, seus olhos ainda cansados da noite mal dormida foram ao encontro de um papel de caderno que se encontrava em seu criado-mudo. Aquele papel dobrado, simulando um envelope, teve o poder de acordá-la totalmente. Seu coração bateu aceleradamente ao reconhecer a letra tremida de sua filha. O envelope lhe era endereçado sim, não havia dúvidas, estava lá escrito com letras azuis borradas, como se lágrimas incontroláveis tivessem rolado e caído em cima das letras.

"Para Mainha e Painho", estava escrito no envelope.

Izadora ficou apreensiva e mais que depressa, com as mãos extremamente trêmulas, retirou os quatro grampos que o fechavam e com os olhos já molhados de lágrimas incontidas começou a ler a missiva que lhe dizia o seguinte:

"Gostaria que lessem com bastante atenção o que aqui escrevo. É um desabafo que há muito tempo venho pensando fazer. Tinha em mente que faria para entregar no dia do meu aniversário. Mas os fatos que vêm ac ontecendo me fazem escrever agora. Antes de chegar aonde eu quero, queria dizer primeiro que você me magoou muito esta noite. Suas palavras foram muito fortes e fizeram meu coração sangrar de tristeza. É isso que você pensa sobre mim? Se for, é uma prova de que você não me conhece. Segundo, não julgue as pessoas com quem ando, pois você também não os conhece o suficiente para fazer certos comentários. Em relação às chegadas tardes em casa, você nem sonha como eu fico quando alguma coisa sai errada. Eu tento impedir de lhe dar trabalho e acabo criando confusão.

Vamos ao que interessa. Gostaria que você soubesse o quanto sofro com o nosso jeito de ser. Somos mãe e filha, deveríamos ser melhores amigas. No entanto, somos como duas estranhas. Quando era criança, achava que você era a melhor mãe do mundo, mas hoje sinto falta de você. Convivendo com as DISCHS, vi como algumas mães agem, e por mais diferentes que sejam, todas conversam com suas filhas. Mãe, você não sabe a falt a que faz um conselho seu, a gente não conversa, a gente não se conhece. Por exemplo: Você sabe o que eu mais gosto de fazer? Você sabe o porquê de eu ter me distanciado um pouco das meninas daqui da rua? Você sabe se eu fumo? Se eu bebo? Se eu "fico"? Você sabe se eu sou virgem? Você sabe sobre o que eu acho da virgindade? Quantas vezes a gente já parou para conversar sobre o que eu devo ou o que eu não devo deixar um rapaz fazer comigo? Olha, tudo que eu sou hoje, tudo que eu preservo de mim eu devo as minhas amigas. Pois, se eu tivesse me envolvido com gente barra pesada, eu tenho pena do que seria de mim.

*

Izadora parou por uns momentos a leitura daquela carta, pois não conseguia conter as lágrimas. Tudo que sua filha dizia ali era verdadeiro. Ela nunca conseguiu conversar com as filhas como "amigas" que deveriam ser depois de mãe e filhas. Ela nunca soube quando começava a "perder" as filhas. Era uma mãe maravilhosa quando elas eram ainda cr ianças. Mas a partir do momento que elas começavam a crescer e fazer suas próprias amizades, era como se de certa maneira, ela fosse colocada de lado e talvez inconscientemente começasse a se afastar delas. Era como se ela tivesse "ciúme" das filhas e este ciúme as afastava dia-a-dia. Izadora enxugou as lágrimas que molhavam o seu rosto cansado e tentou continuar com a leitura daquela carta que tanto a fazia sofrer.

Olha mainha, muitas vezes eu finjo nem ligar para certas coisas, mas você não sabe como eu tô por dentro. Só por que eu sou a caçula não significa que a criação é a mesma, a personalidade seja a mesma, eu sou uma pessoa muito carente e quem me faz sentir mais feliz são minhas amigas. Desculpe se estou sendo grossa, mas às vezes, ao te avaliar vejo que você está mais preocupada com coisas supérfluas como roupas, livros, jóias e em estar sempre bem arrumada... Você só vive estressada, reclama de tudo, só vive resmungando, o único tempo que temos para nos reu nir é nos finais de semana e o que você faz? Só dorme e lê. Eu saio. Vou me divertir, vou pra um show, pra um cinema e quando chego você só pergunta se foi bom. Peraí né? Não é assim não.. Acho que você reclama demais, você não sabe a filha que tem. Eu fico tão triste quando a gente se reúne e começa a falar de nossas mães, eu nunca tenho o que contar. Dentro de casa me sinto sozinha, procuro sair, mas como, penso: vou dar trabalho e ela vai brigar.... ela vai brigar...É isso que fica martelando na minha cabeça em relação a você. Sei que se propusermos alguma saída, você vai chiar. Puxa vida, eu só procuro fazer tudo certinho, estudo pra caramba, procuro passar sempre por média, sei dos meus defeitos e procuro corrigi-los, fico longe de tudo e de todos que possam me fazer mal e durante as três semanas de férias, tempo para relaxar, sair, dançar, só tenho levado bronca. Sabe o que é que as mães das meninas falam: "Por favor minhas filhas, estudem, dêem pelo menos uma alegria a sua mãe, um motivo que me faça ter vontade de fazer as coisas para vocês....E eu faço tudo certinho e só levo bronca.

Sinceramente, não sei o que é melhor. Se eu fosse bem ruim, desse muito trabalho, aí sim você se preocuparia e conversaria mais comigo para abrir os meus olhos. Puxa vida, que mal há em reunir a galera e ficar conversando. Se você me conhecesse melhor e as pessoas com quem ando, se soubesse dos meus valores não haveria nenhuma dessas discussões que estão havendo nesse dias.

Por falar em amigos, seria tão bom se você se interessasse em saber quem eles são. Eu acho que se chegar Paulo ou Manú aqui, você nem sabe quem são.

Gostaria de dizer também que você não pensasse que tudo que acontece no mundo acontece comigo. Por falta de diálogo, você tem medo que eu ande por aí fazendo coisas erradas. É isso que eu digo, se você me conhecesse saberia que eu não curto essas paradas. Voltando ao assunto das festas sabe como é que eu vou pedir a vocês, com medo , com receio de levar um grito, por que painho não fala e você me trata como se eu não soubesse das tentações do mundo. Mainha, com a informação que eu tenho de dentro de casa eu não devia ser a pessoa que sou, deveria ser uma perdida. Mas graças a Deus eu tenho consciência do que é o mundo e sei separar o que é certo ou errado para mim. Por um lado gostei dessa criação, pois aprendi a me virar sozinha.

Às vezes, me sinto perdida, sei lá, queria ter a imagem de você quando era criança. Gostaria que você sentisse a necessidade que eu tenho de me tornar uma verdadeira amiga sua. Eu sozinha não vou a lugar nenhum. Você não sabe o quanto isso interfere nas minhas relações com as outras pessoas.

Eu sou feliz mãe, pela educação, por ter um estudo, uma casa, uma família. Sei que vocês me amam, mas sinto necessidade de afeto. Sou carente de carinho, de compreensão. Vamos mudar isso, se você quiser. Já perdemos tempo demais. Te amo apesar de tudo, e é por te amar que te peço: Largue o fumo. Já perdemos tempo demais. Pode não haver mais tempo e aí nos arrependeremos pelo que passou e não volta mais. Faça isso por mim, pois eu preciso muito de você. Eu preciso te ver como antes, sorridente, brincalhona. Preciso que você viva comigo, conheça o que eu sou, o que faço, minhas amigas, meus sentimentos, minha vida enfim... Temos um longo caminho pela frente para seguirmos juntas.

Amo vocês, desculpa pela sinceridade. É que não agüento mais. Tava me sufocando...

PS: Não mostre para ninguém fora vocês dois. Tenho vergonha.
Beijos...de sua filha.
Madrugada 06-07 2000

*

Izadora estava transtornada e infeliz. Nunca pensou que sua filha tão amada se sentisse tão sozinha e carente. Como é possível que uma mãe que amava tanto uma filha não soubesse transmitir esse amor? Com certeza a falta de diálogo estava separando aquela mãe daquela filha.

Aquele dia foi interminável para Izadora. Passara o tempo inteiro com aquelas palavras dando voltas em seu cérebro. É verdade que ela era uma fumante inveterada. Nunca pensou que a filha tivesse tanto medo de perdê-la por causa daquele seu vício. Há anos que ela fumava e jamais pensara em deixar o cigarro. As palavras no final daquela carta ficaram impregnadas no pensamento de Izadora como se fossem um aviso.

"Te amo, por isso que te peço: largue o fumo, já perdemos tempo demais..."

Aquelas palavras ficaram martelando na cabeça de Izadora por muito tempo ainda. Será que a menina estava tendo alguma premonição? Pensava ela cheia de medo. Será que Deus está fazendo de minha filha mensageira de alguma doença fatal que eu já tenha adquirido? Será que já não estou doente? Estes pensamentos sufocavam-na a ponto dela pensar em deixar o cigarro de vez. Mas como conseguirei? É muito difícil. Pensava ela já em desespero.

Ela já tinha tentado deixar o cigarro algumas vezes, todavia, não teve sucesso. Sempre voltava a fumar. No entanto, o amor pelas filhas era tão grande que ela pensou seriamente numa maneira de conseguir parar com o vício. E aí teve um alumbramento.... Era isso. Tinha que dar certo. Tinha a maior fé que daria. Lembrou-se de que uma amiga sua sempre falava de uma missa pela cura e que sempre acontecia às quintas-feiras numa igreja da cidade. Por coincidência ou por obra de Deus quem sabe, o dia seguinte era uma quinta-feira.

Naquela dia Izadora saiu sem dizer a ninguém aonde ia. Chegou à Igreja na hora certa. Já havia centenas de pessoas cantando e louvando. Sabia que aquela era uma celebração especial e demorada. Mas ela estava disposta a tudo. Tudo faria para se ver livre daqueles grilhões, fazer a vontade da filha e assim, viverem felizes por muitos anos ainda, como ela queria e desejava.

A celebração começara. Izadora estava bastante emocionada com toda aquela demonstração de fé e certeza da cura que todas as pessoas presentes mostravam. O momento da procissão do Santíssimo pelo meio da Igreja com as pessoas chorando, cada uma do seu jeito, levantando a mão e encostando no Santíssimo, pedindo graças e curas foi para Izadora um momento único e cheio de emoção. Naquele momento ela tinha certeza de que conseguiria a sua cura também. Chorava copiosamente em meio à multidão, dando graças por aquele momento sublime.

*

A celebração terminara.

Izadora, assim como todas as pessoas, se retirou da Igreja cheia de fé, de esperança e com a certeza de que o milagre da cura se faria sobre ela. Caminhou lentamente até a calçada, ainda em êxtase. Deu umas moedinhas ao rapaz que tomara conta do seu carro e ainda com o rosto molhado pelas lágrimas causadas por aqueles momentos tão emocionantes que havia vivido, entrou no carro deu a partida e saiu.

Não percebeu um enorme caminhão que vinha em alta velocidade na sua direção. Só ouviu um barulho ensurdecedor...

E mais nada.

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