Tema 198 - PORTEIRA FECHADA
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CORISCO, O MENINO TERRÍVEL
Eva Ibrahim

Os meninos batiam palmas e gritavam ao mesmo tempo, mas, Ana e Flora nem olhavam e as crianças ficavam iradas, pois queriam pedir para entrar e pegar as frutas que haviam caído das mangueiras. As árvores estavam carregadas e o chão forrado de folhas e frutos abandonados, os donos não comiam e não davam á ninguém.

Era uma casa grande e antiga com um pomar que tomava todo o quarteirão, havia muitas árvores que cresciam aleatoriamente e os frutos apodreciam no chão ao sabor do tempo. A propriedade era toda murada com uma porteira em frente á casa, que permanecia fechada com corrente e cadeado. Á distância da rua até a varanda dava cerca de vinte metros e havia arbustos e trepadeiras que encobriam parcialmente a visão da varanda.

Olhando por entre os vãos das plantas podia-se ver as irmãs, mas elas nem olhavam; impossível não ouvir aquela algazarra dos meninos. O cachorro vira-latas latia e corria por toda a extensão do muro, assustando as crianças. As duas mulheres tricotavam, sentadas na varanda da casa, em total concentração. Ficavam ali durante horas, nada as perturbava; eram surdas.

Estavam na meia idade e continuavam invictas, diziam as más línguas. Herdaram a surdez da mãe, mas tinham um irmão que ouvia perfeitamente e prometera aos pais que tomaria conta delas. Raramente saiam de casa, s ó para ir ao médico e acompanhadas do mesmo. As crianças das redondezas que passavam por ali para ir á Escola, queriam entrar para apanhar as frutas. O local atraia a curiosidade da vizinhança; diziam ser uma casa mal assombrada e que as duas irmãs eram bruxas.

Os meninos, de dez á quatorze anos, formaram um grupo liderado por Jurandir. O mais velho da turma; cujo apelido era "Corisco", dado pelos vizinhos, pois, o menino lembrava o companheiro de "Lampião". Ele tinha os cabelos louros caídos na testa, olhar penetrante e muitas sardas no nariz, era o terror da vizinhança. Um garoto destemido, corajoso e maldoso; matava passarinhos e dava para o gato do vizinho comer. Caçava borboletas e as espetava na tábua, ainda vivas, divertindo-se em vê-las debater-se. Andava com um estilingue e algumas pedras no bolso da calça; vivia preparado para alguma emergência, dizia com um sorriso sarcástico.

O grupo combinara de jogar pedras nos pés das mulheres surdas para ver se olhavam para eles. No dia seguinte trataram de por o plano em ação, deixaram alguns tijolos do outro lado da rua e na saída da Escola atacariam com as pedras. Corisco subiu nos tijolos e com o estilingue mirou os pés de Ana e a pedra passou zunindo pelas frestas da porteira acertando a perna da cadeira; pura sorte dos meninos. As mulheres de um pulo ficaram em pé olhando á frente assustadas; os meninos saíram correndo em desabalada carreira. Ficaram com medo das conseqüências da malandragem.

Corisco saiu chutando pedras; da próxima vez entraria no quintal, elas gostassem ou não. As irmãs temerosas não sentaram na varanda nos próximos dias, temiam novas pedradas. O irmão aguardava os acontecimentos para reclamar com os pais das crianças e mantinha a porteira fechada para proteger as irmãs. O garoto malvado, frustrado, imaginava como afastar o cão para poder pular o muro; o animal parecia muito feroz.

Durante dias guardou o dinheiro do lanche para comprar carne e afastar o cão das mangueiras, ele queria provar para os amigos que recolheria as frutas sozinho. Saiu para ir á Escola, mas, foi ao açougue e com a carne na sacola passou a vigiar á casa. O silêncio imperava no local. - Estariam todos dormindo? - E o cachorro, onde estaria? O menino atento observava e escalava a porteira, preparando o pulo. Agarrou a sacola com a carne e pulou, sentia-se vitorioso; foi em busca das frutas. Quando pisou nas folhas e sentiu que fazia barulho, resolveu subir na árvore, estaria mais seguro.

O cachorro pressentiu a invasão e apareceu enfurecido. O menino, trêmulo, atirou a carne no chão esperando que ele apanhasse a comida e fosse para bem longe dali. Puro engano, ele degustou a oferenda ali mesmo e ficou rosnando embaixo da árvore. Corisco comeu uma manga e encheu a sacola, teria que arrumar um jeito de sair dali. Ana e Flora sentaram na varanda com o tricô nas mãos; não olharam para os lados. O cão parecia dormir, mas, ao menor movimento ele abria os olhos e rosnava.

O menino acuado não percebeu que as horas haviam passado e seus colegas saíram da Escola e chegaram em frente á porteira para olhar as frutas. Surpresos e assustados viram Corisco em cima da árvore. O menino gritou por ajuda, não adiantava ser valente estraçalhado por um cão; queria sair dali, não importava o mico a ser pago.

Foram chamar a mãe do menino, que desesperada gritava pelas irmãs que continuavam o tricô. A situação era crítica e a mãe pediu ajuda aos policiais para socorrer o filho. Em pouco tempo havia uma aglomeração em frente á casa e as duas nem notaram. Alguém sugeriu chamar o irmão delas que estava trabalhando perto dali, não poderiam invadir a propriedade alheia.

O homem chegou e só então as mulheres perceberam o movimento e a situação do menino Corisco. Com o animal preso os policiais resgataram o garoto que foi entregue á mãe e recebeu uns cascudos ali mesmo, com promessa de levar mais em casa. De herói pretendido passou á vilão humilhado.

O dono da casa explicou aos policiais que deixava a porteira fechada e o cachorro solto para segurança de suas irmãs, pois eram completamente surdas e prometeu deixar as crianças pegar as frutas do pomar quando estivesse em casa.

Corisco teve que se desculpar com Ana e Flora através de gestos e prometer que nunca mais invadiria quintais alheios; antes deveria pedir licença aos donos. O homem tinha motivos para manter a porteira fechada e o cachorro solto; suas irmãs não percebiam nada e alguém poderia entrar na casa e ataca-las.

Corisco, o terrível, saiu desacreditado pelos colegas, fora humilhado diante da situação que demonstrava que sua valentia era forjada e sucumbira diante de um cão vira-latas.

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