Tema 198 - PORTEIRA FECHADA
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HORA DESERTA
Flavio Gimenez

Sábado de tarde. Todos saíram. Arde lá fora o sol num céu indeciso entre a tempestade e a bonança. Os grilhões do tempo se retesam; entre uma estação e outra, sinto a falta de carinho e a presença dos que quero bem. Tenho comigo os ruídos da infância de minhas filhas, tenho comigo as noites mal dormidas e os bolos de aniversário que marcaram todas as épocas; a vela que ardeu, o rosto que sorriu. Não entrego a ninguém o que ficou de tudo isto. Ninguém me tira mais o gosto das tardes passadas mesmo me prendam e me batam. Eles que venham! Não poderão me convencer a entregar de mão beijada o meu passado, as jóias da coroa, os meus mais íntimos momentos.

Eles que esperem, pois no sábado as famílias modorrentas se aquietam na sonolência da mesmice, o rádio ligado denuncia o programa de baixa amplitude, a televisão se enche de atrocidades. Este é o país que na falta de uma razão, cria uma festa na condenação de um crime bárbaro. A Micareta Da Judiação.

Sábado de tarde: Hora sem nenhuma compaixão. Hora da sesta e da espera do que virá à noite. Do tempero que ressuma dos fogões alheios; do estalar das lenhas nas churrasqueiras que proliferam nas sacadas dos prédios, olhos grudados nos brigadeiros, a mão que balança abandonada ao sono dos dias que se acumulam. Eu não passo nem que me ponham a ferros.

Não vendo, nem a porteira fechada, como querem. Querem que eu lhes passe os segredos de minha felicidade; querem comprar o que não se abate, daí a proposta indecente. De jeito nenhum! Prefiro a vida ao degredo. Eles que venham. Não podem me condenar pelo que sou ou o que tento ser.

Vou ouvindo a guitarra desenfreada tocada por mãos de principiante, ouço os gritos das crianças soltas nos parques dos prédios cheios de cães que ladram. Não são como a minha, coitada, aos meus pés, à espera que eu tome uma atitude e a leve a passear. Eles que esperem na doce calmaria do sábado, no interregno entre as respirações dos corações descompassados, eu não passo a ninguém os segredos que guardo na alma.

Ninguém nunca ficará sabendo que sou feliz, mesmo nesta hora deserta.

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