Tema 200 - 1956
Índice de autores
BONS TEMPOS...!
Doca Ramos Mello

_ ...Nem me fale...

_ ...Sei dizer que a freira quase me arrancou o couro, eu me lembro até da sensação que senti só ao perceber que havia perdido o bilhetinho. Botei a mão gelada sobre o peito e suspirei fundo, estava perdida! Naquela hora, tive certeza de que ele caíra em algum lugar ali dentro do colégio, portanto a conclusão fatal era que já estivesse nas mãos das freiras. Ainda assim, rezei com fervor para que não tivesse caído nas garras de ninguém menos que Irmã Maria Sigisberta, Jesus Misericordioso olhasse por mim, Nossa Senhora me amparasse!

_ ...E amparou...?

_ Ela devia estar ocupada com alguma outra necessidade infantil mais urgente, os céus têm prioridades, você sabe... Não só o bilhete estava com Irmã Sigisberta, como não demorou muito para ela chamar minha amiga Terezinha às falas, afinal a mensagem tinha o nome dela no remetente e ela, ai...

_ ...Ela...?

_ Terezinha me entregou, disse que não tinha sido ela a escrever a peça, que a autora das linhas endereçadas a um menino era eu, naturalmente tirando corpo fora, pois ela tinha me pedido para escrever por ela. A Irmã conferisse minha letrinha arredondada, recomendou a ingrata com a carinha branca e rosada como uma flor, era só dar uma olhada em meus cadernos. Aí, a Irmã me chamou.

_ E você?

_ Perna bamba, suor nas mãos, um buraco no estômago, olhos arregalados. Só fazia pensar no castigo que ia receber, no que pensariam de mim os colegas, no que diria minha mãe, que tanto sacrifício fazia pela educação das filhas no melhor, mais caro e único colégio particular da cidade. E se me expulsassem, oh, Senhor?! E se o fogo do inferno me cobrisse a cabeça? E se me botassem para fora do paraíso, como Deus fizera com Eva e Adão por causa de uma maçãzinha de nada? Santana do Livramento rogasse por mim!

_ Mas o que foi que sua amiga pediu que você escrevesse no bilhete, afinal?

_ Nada além de que ela gostava dele, achava que ele era bonito, umas bobeiras assim apenas, uma inocência. Eu, burra, fiz o bilhete com o maior capricho, creio que me senti meio cupido, sei lá...

_ O que aconteceu com você?

_ Bom, fiquei sem recreio por dias, sem lanche, tive de fazer tarefas extras, orações de monte, escrever frases disciplinadoras às pencas, mas não me lembro se houve alguma conseqüência maior, nem se mamãe ficou sabendo. Fiquei abalada, acreditava que tinha manchado minha reputação, que ninguém mais iria aceitar a minha amizade, fora a vergonha que passei a ter do menino, que se chamava Adilson... E minha amizade com Terezinha nunca mais foi p'ra frente. Nós duas ficamos muito envergonhadas.

_ Verdade?

_ Pois é. E não é a primeira vez que me recordo desse fato, ocorrido em 1956 (ou seria 1957? Eram os anos 50), quando eu estava na terceira série do colégio de freiras de orientação alemã. Foi um acontecimento trágico na minha infância, nunca vou me esquecer do medo que me gelou as pernas quando Irmã Sigisberta me mostrou o bilhetinho e perguntou, olhos por cima dos óculos redondinhos de aro dourado: "O que significa isso, mocinha?" O chão se abriu debaixo de mim, eu quis morrer...

_ Em 1956 isso deve ter sido de lascar...

_ Anos mais tarde, já casada e com uma filha, eu lecionava inglês e português em escola pública e uma tarde, estava à porta da sala quando vi dois grupinhos se estranhando no corredor. À frente, três garotinhas caminhavam às gargalhadas, mais atrás, uns quatro ou cinco meninos debochavam delas, faziam gracinhas, piadas, gritavam algumas coisas. Ia interferir, quando um deles saiu do meio dos colegas, correu atrás das meninas, bateu no ombro de uma loirinha franzina e apontando para um dos meninos lá atrás, falou rindo: "Olha, ele disse que já comeu você, você e você. E ele prova".

_ Rs...rs...

_ Pois a loirinha olhou para trás e berrou: "Ah, vá cagar no mato!"

_ Rs...

_ Aquela menina estava na terceira série, como eu, no episódio do bilhete! As coisas mudam muito.

_ Fosse hoje...

_ ...Nem me fale...

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor