Tema 200 - 1956
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NASCIDO EM CINQUENTA E SEIS
Leonardo Lopes

Das horas que disponho, poucas são devotadas a fazer de mim alguém mais cônscio de mim próprio. Vivo como muitos, na louca turba de vai-véns, num automatismo doido, cercado de romantismos e motivos de continuar. Ao puxar o freio da ação e inclinar-me reflexivo, incômodos fazem com que me mexa de novo, e recomeço as idas e vindas. Busco fôlego nas ranhuras do solo rachado, ressequido, envenenado, no solo das minhas ilusões. Estéril, faz brotar do chão vapores. Inebriantes, contagiam minha mente, embriagado estou. E assim emendo um dia ao outro, intrépido, treinando sem parar as formas de conjugar inveja, orgulho sem razão.

O vento em lufadas, vira as páginas brancas dos meus dias. Sem rasgo, sem dobra, sem furo, sem sinal de mancha, as páginas grudadas, umas às outras, repetidas, alvas, sinônimas. As páginas, em capítulos, contam tristemente a melodia de uma canção sem dó. Às vezes um pingo, um traço, um carimbo. E então o vento sopra rápido e me deixa atônito.

Das muitas horas, em poucas me vejo. Já não me reflito, tenho medo, não há tempo. Já me esqueci. No prazer de viver, vivo, ao modo de quem sabe apenas que pode acabar.

Acabo, antes da hora final, de descobrir uma flor. No muro da casa, forte, amarela, castigada de sol, faz morada a um revoar de insetos. Já tarde, chamam-me às pressas, mania de perfeição: nasce uma criança.

Sinto aquilo que não queria chamar de esperança. Deixei-me passar dos cinquenta anos para sentir aquilo que temia ser felicidade. Os incrédulos que me perdoem: hoje e somente hoje, serei eu mesmo.

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