UMA TARDE NO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
fotos e texto: Beto Muniz

Quinta-feira, 13h30min. Eu deveria ir até a escola da minha filha para a reunião de pais e mestres, mas resolvi protestar contra essa idéia absurda de convocar adultos num dia útil, em pleno horário comercial e dar folga aos alunos. Detalhe: na reunião pedem a presença do pai e da mãe, mas não permitem que o aluno (faixa etária entre 04 e 06 anos), os acompanhem. O que essas escolas estão pensando? Que ninguem trabalha? Além dos pais ainda recrutam avós e tias por tabela!

Enfim, para não parecer que meu protesto era eufemismo para vadiagem - já que estou sem trabalho e, portanto, com muito tempo livre, decidi conhecer o Museu da Língua Portuguesa em companhia da aluna sem aula, por sinal minha filha que aos seis anos já lê quase tudo. Pai babão se orgulha de cada coisa!

Antes de sair para visitar um museu, biblioteca, teatro, sebo, parque, praça, desfile de fanfarras, jogo de futebol... Ou seja, sempre que vou sair de casa com criança, faço a tripla checagem: Barriga cheia, bexiga vazia e agasalho adequado!

Depois, no meu caso, é só esperar o trem.

(ao lado, foto da Catarina na estação Piqueri-São Paulo-SP)

O Museu da Língua Portuguesa fica na Estação da Luz. Trem e metrô.

De casa até a estação da luz são quatro estações, uns 15 minutos no trem da CPTM, além dos R$ 2,10 (dois reais e dez centavos) pela passagem. Minha filha já sabe que se passar por debaixo da catraca vai ganhar a metade do valor da passagem. Dessa vez ela depositou no seu cofre exatos R$ 2,10 pelas economias na ida e na volta.

(foto da Catarina ao chegarmos na Estação da Luz)

A estação da Luz foi construída pelos Ingleses interessados em dominar e explorar a malha ferroviária da capital paulistana.

Para o azar dos paulistanos, cearenses, pernambucanos, gaúchos, paraenses, mineiros, cariocas e demais habitantes da cidade de São Paulo e dependentes do transporte público, esse domínio não aconteceu. A malha ferroviária paulistana está ao Deus dará...

(close da estação da luz e a torre clone do Big Ben)

O Museu da Língua Portuguesa ocupa três andares do prédio em toda sua extensão. Acesso apenas pelos dois elevadores!

O primeiro andar (pareceu-me subsolo) é destinado às exposições temporárias. Atualmente ocupado pela comemoração dos 50 anos do livro GRANDES SERTÕES, VEREDAS - João Guimarães Rosa.

Logo na entrada - ainda não é hora de olhar para cima, um entulho de obras passa a falsa impressão que o museu ainda não ficou pronto...

O segredo está em observar o entulho de pontos estratégicos!

Foi muito fácil descobrir onde estava uma das dezenas de lupas da compreensão. Tratei de fotografar para que todos pudessem visualizar o texto escondido no entulho.

Outra lupa da compreensão e mais um texto se desvenda para o leitor. O detalhe, coerente com a exposição, é que todos os textos são excertos da obra de Guimarães Rosa.

Mas engana-se quem pensa que as lupas da compreensão estão em locais de fácil acesso. É preciso escalar escadas e estruturas em madeira bruta, pau de obra, com alguma segurança sim, mas nem por isso menos rústicos pontos de observações.

(foto da Catarina hipnotizada com o olho dentro da lupa da compreensão)

Pendurado, um saquinho de terra genuína do sertão.

Na verdade, os saquinhos de terra genuína do sertão estão por toda parte! Eles foram pendurados por cabos, presos num sistema de roldanas e servem como contrapesos para subir ou descer as páginas do livro aniversariante, ao nível adequado de leitura dos visitantes.
Em lona, medindo aproximadamente 1,20 x 0,80 centimetros, cada peça reproduz integralmente a frente e o verso de páginas que compõem o livro GRANDES SERTÕES, VEREDAS.

De um dos pontos de observação dos entulhos, fotografei as páginas do livro.

Notem o trilho de sustentação e, com bastante atenção, é possível ver os cabos, as roldanas e os saquinhos de terra do sertão pendurados.

As páginas seguem a ordem de numeração no livro, começando a contagem na entrada do salão de exposição e, na seqüência, estão espalhadas por todo o ambiente.

Estão bem no alto, mais de três metros de altura.

Para ter acesso a elas o visitante deve puxar pela fita presa na parte inferior da página. Os saquinhos de terra genuína do sertão fazem o sistema de elevador funcionar deliciosamente bem.

As letras são grandes, reprodução direto do original datilografado pelo Guimarães Rosa. As correções feitas de próprio punho estão lá, encantando o leitor e mostrando o processo criativo-revisão-recriação-correção do autor.

Certas páginas estão com mais da metade do seu conteúdo riscado pelo autor. Pena que não dá para ler as partes retiradas do livro, porque o Guima rabiscava as palavras totalmente. Talvez para não cair na tentação de reaproveitar o escrito já eliminado... Vai saber!

(foto da Catarina segurando uma das páginas no andar térreo)

Atente suas vistas! Olhe a parede de tijolos no chão, ao lado...

O livro não está reproduzido apenas nas páginas suspensas. Está também nos entulhos, nos tijolos dispostos no chão, nas paredes e diversos outros meios...

Essa falsa parede de tijolos, reproduz uma frase, apenas, da página 328 do livro GRANDE SERTÕES, VEREDAS.

Confesso que essa frase me fez pensar nos novos autores, nos escritores amadores, nos Anjos de Prata... Tudo que eu desejo é que essa gente permaneça e se torne forte.

Repara nesses tambores e na concentração da Catarina.

São tambores da palavra.

Eu explico!

Tem texto do livro até embaixo d'água!

Alguns parágrafos estão invertidos, dentro do tambor com água.

Para uma boa leitura basta um espelho!

Gostaria de saber quem foi o gênio que pensou esse truque!

OK! OK! OK! A Catarina se encantou e perdeu mais tempo nessa brincadeira que em qualquer outra atração da exposição... Coisa de criança? Que nada!

Estava cheio de adulto tomando espelhinhos de adolescentes.

Cada tambor têm quatro espelhos disponíveis.

De repente! Não mais que de repente, percebo a Catarina carregando um bloco de cimento, pareceu-me que bastou uma distração e lá foi ela, desmanchar o entulho... aquele entulho que tem texto do livro escondido!

Desesperado, corro em silêncio para não chamar a atenção dos seguranças e visitantes, mas é tarde demais!

Ela só queria alcançar os binóculos presos à parede e ver também o que todos estavam vendo.

 

Como não poderia deixar de ser, os binóculos mostram mais textos do livro.

Ao longo da parede estão uns vinte orifícios para serem observados. Toca a Catarina olhar um por um dos binóculos, mudando o bloco de lugar a cada nova observação.

(foto do interior de um dos binóculos)

O alívio veio quando eu soube pela pseudo-destruidora de obras de arte, que o bloco de cimento não era do entulho de textos. Foi um dos seguranças quem emprestou para ela alcançar os orifícios.

Algumas imagens mostradas pelos binóculos são bem coloridas!

(outra foto feita com a lente colada no orifício)

Mais amostras de criatividade para expor excertos da obra aniversariante.

Ao lado um painel feito com sacos de estopas cobre parte da parede.

Na foto também é possível perceber melhor a estrutura precária com que é montado um dos pontos de observação dos entulhos. Catarina está lá em cima! Olhando pela lupa da compreensão.

Aqui temos um pedaço de madeira com outro excerto do livro GRANDE SERTÕES, VEREDAS bordado em lã vermelha... os furos, provavelmente, foram feitos com auxílo de uma furadeira. A lã que sobrou não foi cortada e fica essa aparência de tinta escorrida, de sangue vertendo.

São vários painéis feitos assim, com lã e madeira. Alguns medindo cerca de 4,00 metros de altura por 5,00 metros de largura.

Sim, são enormes!

Na despedida do primeiro andar, na escada que leva para o segundo andar - já dentro do prédio compensa dispensar o elevador, o ambiente é forrado por reproduções de recortes de jornais com matérias sobre o livro do Guimarães Rosa.

Catarina, para variar, fez pose. Tudo bem, ela pode!

A verdade é que fico orgulhoso e feliz por, desde sempre, ela ser minha companheira nas aventuras culturais. Não reclama fome, sede, cansaços, xixi, etc, etc... Apesar da tripla checagem na saída de casa, seria compreensível certos incômodos no decorrer das horas.

 

No segundo andar começa o que podemos chamar de MOSTRA PERMANENTE!

Essa tela (foto) tem 106 metros de comprimento e 2,80 metros de altura. Nela são projetados, ininterruptamente, incontáveis filmes mostrando as várias formas de utilização da palavra... tem de tudo, de música à culinária.

Na lateral, em toda sua extensão, alguns bancos para os espectadores que quiserem se demorar nesse corredor. É possível ficar horas diante dessa tela. Por causa da pouca iluminação e da proibição quanto ao uso de flashes não aparece o tanto de gente sentada, assistindo.

Vários terminais computadorizados mostram a origem das palavras utilizadas e incorporadas pelo português falado no Brasil.

Neste salão a gente descobre e se encanta com as influências árabes no idioma português original. E depois, já no Brasil, as expressões e palavras afro e européias, além da indígena, que foram incorporadas ao português.

A foto ao lado mostra o painel de palavras do idioma espanhol incorporadas ao nosso idioma.

Ainda no segundo andar, a origem de tudo!

Praticamente um cronograma do que se supõe, e do que de fato aconteceu ao longo dos séculos que culminaram no português falado no Brasil.

(foto do início da história da palavra: 4.000 a.c.)

De museu aqui só o nome!

Nada é objeto de época exposto. O painel reproduz imagens impressas de artefatos, mapas, textos, ilustrações e suposições do que culminou no idioma original. Parece mais com o conteúdo de livro que ao invés de ser impresso e encadernado, foi colado na parede!

Ao lado uma foto da reprodução impressa do Alcorão manuscrito em tinta e ouro sobre couro. Encontrado na Peninsúla Ibérica.

Para ficar a par de tudo que o painel/cronograma apresenta, é preciso resistência física.

O corredor tem uns 60/70 metros de extensão e informações demais, concentrada neste espaço. O visitante fica o tempo todo em pé, lendo e observando detalhes que moldaram o nosso idioma desde 4.000a.c. até 2000d.c.

Foto do frontispício de A DEMANDA DO SANTO GRAAL, um dos mais antigos documentos em Português medieval, que narra as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda.
Basicamente, a informação sobre o idioma na época do descobrimento do Brasil se resume a um amontoado de mapas da época, informando o que os portugueses estavam aprontando no mundo e que, posteriormente, influenciaria no idioma.

Na foto ao lado, mais mapas ao longo dos séculos pós descobrimento... Mas não se deixe enganar pelo meu mau-humor em relação ao excesso de mapas. Essa parte do painel não é um assunto chato!

Diante das informações disponíveis é fácil e divertido ligar um assunto no outro e se colocar à par do nascimento do idioma "Brasileiro". Mas as pernas já estão pedindo banco!

Os fatos mais ricos, das décadas mais ricas, da história do enriquecimento do nosso idioma, estão citados na etapa de 1900 à 1960. Nesse pedacinho de corredor - uns nove metros, passa-se mais tempo que nos outros 61/51 metros... e as pernas até esquecem que estavam cansandas.

Fatos contemporâneos... tem quase tudo em matéria de jornais e revistas que fizeram a história recente do país. Até a revista do Cebolinha! O corredor e o painel terminam no ano de 2000.

Questionável o espelho onde o visitante se vê e lê, logo abaixo, a inscrição: NESSA LÍNGUA, NOSSO MELHOR RETRATO. Chave de ouro? Achei tolo.

No segundo andar estão outras atividades, mas estavam repletas de adolescentes e não fomos. Aliás, o horário da sessão de cinema no terceiro andar pedia que eu passasse direto por duas ou três portas.

Volto outro dia.

 

TERCEIRO ANDAR!

Cinema e sala escura com projeções de textos no solo, no teto, nas paredes... as projeções vão se sucedendo e o som é de poetas, atores, gente comum falando ou declamando poemas e cantando.

Tem Drummond por ele mesmo, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Haroldo de Campos. Uma maravilha ouvir e ver.

(seqüência de fotos feitas no escuro)

 
piso iluminado para Manuel Bandeira
piso iluminado para Haroldo de Campos
piso iluminado para Carlos Drummond de Andrade
piso iluminado para Lamartine Babo
outro piso iluminado para Manuel Bandeira
piso iluminado para Fernando Pessoa
pé da Catarina na bandeira com Gonçalves Dias

Em todas as paredes, inclusive nos banheiros, textos da literatura brasileira ou do idioma português mundo a fora...

Fotografei alguns dos que eu mais gosto, para começar o excelentissímo Drummond com: "Não facilite com a palavra amor".

 

Esse excerto é fantástico. Monteiro Lobato, por Emília:

A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais.

[...] A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.

- E depois que morre? - perguntou o Visconde.

- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?

 

Como é possível ser comprovado na matéria acima, valeu a pena e o cansaço. No decorrer da próxima semana vou até a escola de minha filha para falar com sua professora. Espero conseguir passar meu descontentamento diante dos horários esdrúxulos para reunião de pais e mestres... a verdade? Minhas urgências estão claras. No momento eu preciso aproveitar o interesse e curiosidade infantil para despertar o gosto pela cultura na minha filha. Vai que semana que vem eu esteja atolado até o pescoço com um trabalho remunerado!

Beto Muniz
11 de Maio de 2006