Tema 001 - FIM DE FEIRA
BIOGRAFIA
ESBARRO
Beto Muniz

Eles se conheceram nos bastidores da barraca de condimentos. Esbarraram-se. Ele descarregando sacos de cebolas e ela ajeitando o cheiro-verde. Foi amor à primeira vista, apesar de mau se enxergarem na penumbra natural da madrugada.

Após vários meses armando as bancas nas madrugadas, ele sempre ajudando a ela, e desarmando no meio do dia, resolveram unir as barracas e as velhas Kombis. As cebolas e batatas dele com as pimentas do reino e coentros dela. Depois de muitos desmontes e arrumações, alguns atrasos por conta dos afagos entrecortados pela arrumação da carga conjunta, prosperaram e compraram, ainda em comum acordo, a barraca de legumes e verduras. Casaram. Ele descarregando caixas de tomates e ela ajeitando as alfaces. Casaram porque o amor pedia e o tamanho da barriga dela exigia. Felizes diante do padre, chuva arroz na porta da igreja e corrida para montar a barraca na feira de domingo.

Ela notou o primeiro chute na barriga quando ele que estava pesando beterrabas. Cheia de euforia mostrou a ele. A alegria conjunta foi tamanha, que entre um chute e outro, deram vários quilos de chuchu pra freguesia. E mesmo assim prosperavam. No finalzinho da gravidez contrataram um ajudante para ele. Ela ficava em casa, com os pés e a barriga enormes. Os pés para cima inchados e a barriga besuntada com óleo de amêndoas. Ele voltava no meio da tarde exausto, mas feliz. Trazia sempre um agrado: um pepino, uma cenoura, uma vargem verde. Um dia trouxe batatas e cheiro verde em comemoração ao dia do esbarro. Do amor à primeira vista.

Nasceu. Era menina. Ele chorou e babou. O ajudante ganhou folga e na feira ficou um lugar vago... Quem se importava? Os corações estavam cheios, entornando alegrias. No dia seguinte o trabalho foi dobrado, mas o lucro foi reduzido. De tanta felicidade ele dava abobrinha a mais para a freguesa; setecentos gramas de jiló pelo preço de meio quilo. Rabanete em dúzia de 15. Não se sabe se doou ou vendeu toda a carga, e já que não tinha nada para carregar e descarregar, aproveitou por mais tempo o horário de visitas.

Levou a família para casa e correu até o Ceasa. A feira do dia seguinte foi mais dura, a freguesia queria a moleza anterior. Dona Maria pegava o conteúdo do balde e queria pagar pelo preço da bacia. Deu briga. Foi para casa cansado e amuado. Ainda passou a noite acordado ouvindo o choro da filha. Lamentos e gemidos na madrugada, ele pedindo para Deus amenizar a dor da esposa. Dormiu mesmo só pelo cansaço. Levantou cedo e foi para a guerra armado com quiabos e mandioquinhas.

Arrumou os repolhos e as couves-flor, cochilou sentado amarrando maços de espinafres e quase se esborracha em cima das acelgas. Sentiu saudades de casa, pensava na família enquanto baixava os preços do almeirão. Invadido pela saudade, pensou na barraca de cebolas e percebeu a verdade, sentia falta era daquele tempo da barraca vizinha que tinha uma garota bonita vendendo coloral. A nostalgia foi tamanha, que terminada a feira foi o último a deixar o local. O sono e o cansaço faziam ele trabalhar em câmera lenta. Estava tão prostrado que o ajudante foi ao Ceasa pela primeira vez, no lugar do patrão. Ainda teve ânimo para pensar que estava na hora de contratar mais um auxiliar.

O caminhão da prefeitura veio recolhendo o lixo da feira e ele ainda estacionado, amarrando no teto da Kombi nova, a última madeira da banca. Sonhava com o início de tudo, o esbarrão na moça que ajeitava o cheiro verde, num tempo remoto, quando ele ainda fedia a cebolas. O esguicho de água em seus pés fez ele perceber que estava atrapalhando.
Chegou em casa e a família dormia. A filha era um anjo, ele constatou parado ao lado do berço, a esposa uma santa. Também era fato, ele estava um trapo só. Parecia tomate esbagaçado no asfalto em final de feira.

Quando a esposa acordou ele dormia aos pés da cama, encolhido, com um sorriso nos lábios. Sonhava com uma vida mais amena. Ela trabalhando com a barraca de pastel e ele na Kombi tirando caldo de cana. Entre uma garapa e um pastel, eles se acenavam.

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