Tema 004 - O PÚCARO BÚLGARO
BIOGRAFIA
UM PÚCARO NA MINHA VIDA
Viviane Alberto

O suficiente não existe. Agora eu sei disso. Pra nada, nunca. O limite, a suficiência é só um vocábulo perdido na linguagem.

Nem dinheiro, nem amor, nada. Pra continuar a gente precisa estar inquieto, querendo mais, assim, meio que descontente.

É assim que funciona, pro mundo não parar. Daí veio a roda, o avião. Já a escada rolante, não. Nem o elevador. Nesses casos, a história foi outra. Um outro tipo de ser humano deve tê-los inventado, alguém com muito mais placidez do que inquietude. Mas isso fica pra outro dia.

Existe um termo, equilíbrio dinâmico, usado em física. Eu há muito tempo me esqueci o   significado dele para essa ciência. Mas do termo eu não esqueci e o aplico como uma regra, um objetivo, na minha vida mesmo.

Minha inquietude é nata, está ali escondidinha nas minhas células. Sabe aquelas pessoas que não conseguem ficar paradas, nunca? Nascem com formigas no corpo, como diz minha avó (na verdade, ela diz especificamente em que lugar do corpo estão as formigas). Eu sou assim. Tenho formigas no corpo. E borboletas no cérebro.

Pra mim, estar em equilíbrio é sempre estar buscando alguma coisa. Não precisa ser nada grandioso, não. Se é de manhã, eu penso no que fazer logo mais, no almoço. Ao entardecer, me preocupo com o que lerei antes de dormir. E, com a cabeça no travesseiro, enquanto Morfeu não vem, fico inventando o filminho do dia seguinte. Agenda, possibilidades. Meus sonhos é que sabem o trabalho que eu dou.

Também não sei amar serenamente. Acho até um defeito isso. Sempre estrondo, sempre furacão. Eu não sei gostar só um pouquinho. Eu quero a pessoa toda pra mim, quero atravessar, fazer parte, quero tudo. Sempre e muito. Meu coração não é uma bomba hidráulica, é uma roda-viva. Desconfio até que não tenho veias. Meu sangue deve circular por fibra ótica, tamanha velocidade que ele alcança. As bochechas ficam vermelhas, dá falta de ar. Mas é bom, sim.

E, com as letras, não poderia ser diferente. A leitura, os livros, sempre fizeram parte da minha vida. No começo, ainda na infância, me faziam companhia. No apartamento em que eu morava viviam também todos os personagens que eu encontrava nos livros infantis. Aqueles com quem eu falava por horas e todo mundo achava estranho, aquela menina ali, falando sozinha.

Mas minha voracidade também atingiu a literatura e, tal e qual uma traça de biblioteca, fui devorando tudo que apareceu na minha frente. Tanto lixo e tanta coisa boa... Tive indigestões literárias e cometi orgias textuais. Sempre muito, como já disse.

E comecei a brincar de escrever. O que foi um problema. Por mais que eu tivesse lido, as palavras estavam sempre ali, boas ou ruins, uma depois da outra. Em fila indiana. Da esquerda para a direita, já que só leio e escrevo em português. Brinco de inglês e machuco no francês. Como fazer então, se minha linha de raciocínio não era uma linha, mas um novelo emaranhado, desses que os gatos jogam pra lá e pra cá?

Conclusão: eu escrevia, sim. Mas com medo. Literalmente com as pontas dos dedos. Com receio de confundir, falar bobagem, chocar. Ou pior, não me fazer compreender. Nada é pior pra quem está escrevendo do que imaginar o leitor babando sobre o papel, ou muito pior, não causar reação nenhuma. Nem sim, nem não. Passar batido.

Até que, nessa minha comilança de letrinhas, alguém me serviu, de bandeja, Campos de Carvalho.

Foi um choque. Um vaso que caiu na minha cabeça. Um púcaro, para ser mais exata. Um Púcaro Búlgaro. Que fez meu medo de escrever virar cacos.

Cada parágrafo faz parte da estória. Mas, dentro do parágrafo, tem outras estórias. Loucas estórias, insights que foram parar ali.

A sensação que eu tive foi a de que ele escrevia como quem caminhava, na calçada. Sabe quando nosso pensamento vai longe, enquanto observamos nossos pés, o trânsito, as pessoas, o sinal que fecha, a criança que chora do outro lado da rua? Tudo assim. Rápido, dinâmico. Desequilibradamente. Do jeitinho que acontecia na minha cabeça.

E ele não tinha medo de escrever. E estava tudo lá. E tudo tinha sentido, mesmo o que não era pra ter, como a própria estória principal.

Desbundei. Perdi o medo e os sentidos.  

Agora tudo ficou mais fácil. O que eu escrevo é isso aí que vocês conhecem. Se vocês entendem, eu não sei. Mas é o que flui, o que sai da cabeça que borboleteia. Eu queria que vocês entendessem. E queria, mais ainda, que lessem Campos de Carvalho. Tentem, suas vidas jamais serão as mesmas.

E esqueçam essa história de púcaros búlgaros. Não existe, e nunca existirá um púcaro búlgaro. Se a Bulgária não existe, quem dirá um púcaro daquela procedência.

Não existe. E acabou.

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