Tema 012 - LÁ FORA
BIOGRAFIA
CLAREANDO
Beto Muniz

Não lembro quando passei a ter medo de altura. Quando pequeno subia em árvores, escalava pequenos obstáculos e até cheguei a praticar salto em altura. Na adolescência devo ter esquecido essas peraltices disfarçadas de modalidades esportivas, pois minha fase adulta veio acompanhada desse medo. Teve época em que não subia nem na cadeira para trocar lâmpada queimada.

Ao mesmo tempo em que alimentava esse medo, fui criando outros medos urbanos. Medo de chegar em casa e ser assaltado no portão. Medo de ter a casa invadida durante a noite. Medo de bala perdida. Medo de sair à noite com a família. Medo de perder todos os bens domésticos durante uma viagem de férias em que a casa fica fechada. Desenvolvi até mesmo um pequeno e incômodo medo do escuro. Passar em ruas escuras, nem em pensamento! Perdi tempo e combustível desviando meu caminho para locais iluminados e movimentados.

Atendendo aos apelos dessa crescente sensação de insegurança, resolvi morar em apartamento. Condomínio fechado. Meu primeiro apartamento. Após verificar e aprovar todos os itens de segurança que o condomínio oferecia, tive que escolher uma entre as cinco unidades disponíveis no prédio. A mais próxima do chão era no quinto andar. Fiz uma relação dos prós e contras e comparei durante duas semanas. Visitei o imóvel uma dezena de vezes até concluir que onze metros de altura era uma dificuldade que eu conseguia administrar. O item segurança influenciou minha decisão - no quinto andar fica mais difícil uma invasão pela janela. As redes de segurança nas janelas e sacadas foram providenciadas logo no início, mesmo não tendo crianças na casa, e só após quatro anos morando no mesmo local eu consegui criar uma certa intimidade com a altitude. Só precisava ficar longe da sacada.

Quando minha filha nasceu, a vida era bela. Ela começou a andar e a vida virou um suplício... A menina desprezava meu medo de ir até a sacada e me provocava, corria até a rede de proteção onde se jogava feito bola em gol. Parecia ser proposital, mas ela ainda tinha só um aninho! Ignorando meu pavor ela, toda faceira, ainda se dependurava no parapeito para gritar com os vizinhos. A vida só voltou a ficar bela quando pude desafiar meu medo e sair na sacada.

Foi após uma tempestade de final da tarde, quando uma árvore caiu e arrebentou os fios de eletricidade na rua. Cheguei em casa e encontrei o prédio quase às escuras. Restava subir pelas escadas, mas por alguma razão, que pretendia investigar junto ao síndico e esqueci, as luzes de emergência estavam apagadas. A garagem recebia um restinho de luz natural, mas as escadas não. Nem uma fresta. Nem se eu deixasse a porta corta-fogo aberta teria como enxergar o caminho. Procurei por uma lanterna que sempre tenho no carro e justo naquela semana tinha tirado as pilhas para usar num brinquedo da minha filha. Fósforo, isqueiro? Fazia menos de um mês que tinha parado de fumar. Alguém para iluminar meu caminho? Nada. De repente, comigo ainda no primeiro degrau segurando a porta, o celular toca. Atendo e é minha esposa, do telefone da vizinha, avisando que o prédio está sem energia elétrica.

Peço socorro, uma vela. Ela diz que tem velas, mas não tem fósforo. Sempre que precisa de fogo usa o acendedor automático do fogão. Aviso que tem um isqueiro numa das minhas gavetas, mas ela já desligou. Antes que eu decida voltar para o carro e ir até a padaria em busca de pilhas e fósforos, tenho uma idéia: se me inclinar um pouco, a luz esverdeada no painel do celular ilumina o breu e dá para ver os degraus. Subo cinco andares de cócoras.

Entro em casa e vou procurar o meu velho e eficiente Zippo, que por sorte estava guardado como recordação de algo ou alguém. Acendo quatro velas e ilumino a casa, os medos, a esposa e a filha. Maravilha! Agora é tomar um banho e aliviar o cansaço do dia. Chuveiro elétrico, banho frio no escuro.

Horas depois, já aquecido e com a filha dormindo no meu colo, penso em matar o tempo ligando para parentes e amigos. Queria colocar as conversas em dia, mas meu aparelho também é fax e não funciona quando falta energia. A esposa ainda zomba: "Porque você acha que eu fui te ligar da vizinha?" Tento usar o celular e descubro que a bateria já era, arriou. Sem televisão, sem som, sem computador, sem microondas, descubro que na minha casa somos todos escravos da energia elétrica.

Uso um pedaço de jornal, aceso na vela, para acender o fogo e esquentar um macarrão que sobrou de domingo. Aproveito que o abridor não é elétrico e abro um vinho. À luz de velas, eu e minha esposa comemos macarrão requentado e bebemos vinho de primeira. Na penumbra vamos, lentamente, resgatando o romantismo adormecido por culpa da rotina, dos dias cada vez mais complicados e somos arrastados para uma noite de amor à moda antiga. Não tem filme bom passando na TV, nem novela, nem aquela reportagem exclusiva, nem internet ou e-mail para baixar, nenhuma máquina de lavar roupas ligada, nem secadora. Temos a noite toda, livre e escura, a nossa disposição.

Na madrugada a luz chegou sem alarde. Esquecido de que por anos havia evitado sair na sacada, levantei e fui ver a cidade encharcada. Lá fora, as luzes de ontem refletiam no asfalto molhado. Dentro de casa, dois pratos sujos, um litro de vinho vazio, quatro velas derretidas e uma paixão nova.

Amanheceu com as nuvens pesadas tomando o rumo norte e eu presenciando o primeiro nascer do sol sentado na minha sacada. Foi ali, naquele momento, que resolvi enfrentar meus medos. Pensando bem, todos eram bobos e olhando para baixo a altura não me incomodava tanto assim. No decorrer da semana eu soube que a cobertura estava à venda. Afrontando meu maior medo, fui conhecer o imóvel e o preço. Apesar da vertigem, quando olhei para baixo, decidi ir para o alto. Estou mais próximo das estrelas.

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