Tema 017 - PISCA ALERTA
BIOGRAFIA
NA JANELA
Viviane Alberto

Ninguém entende por que eu não dirijo. E se eu digo que ninguém entende, é porque todo mundo me pergunta. Também, não é muito fácil entender por que uma criatura prefere ficar sacolejando em circulares, ônibus inter-municipais, metrôs, trens, marinetes, qualquer coisa que me leve de um lugar pro outro, menos dirigir. Eu explico.

Eu gosto mesmo é da janelinha. Da paisagem, das coisas passando. É iniciar o trajeto e minha cabeça vai longe, muito mais longe do que quatro rodas me permitem ir. Eu desligo e não adianta dizer que o papo era bom. Podia até ser, mas não sei, tem os postes, e os fios, e as pipas enroscadas neles, têm uns tênis lá em cima também. E eu começo a imaginar como aqueles tênis foram parar lá e porquê.

Algumas pessoas vendem coisas quando os semáforos fecham. E é mais forte do que eu aquela curiosidade, o que está por trás daqueles olhos que me vendem drops? É uma criança, um jovem que não cresceu? Ou não é nada disso e tem alguém esperando ali, logo depois da árvore, pra pegar o dinheiro das balas e renovar a garrafa de cachaça da boa?

A gente se sente tão pequeno dentro de um carro cercado por caminhões, ônibus. Olhando pelo espelho, tenho a sensação de que eles vem muito rápido e vão passar por cima de mim. Às vezes, uma caminhonete ou outra me dá a impressão de que seu motorista gostaria de se sentar bem aqui, no banco de trás. Eles colam tanto que, se eu prestar bem atenção, posso ouvir a música que ele está ouvindo no seu rádio.

Ou ele pode ouvir a minha música. Também gosto de cantar enquanto transito. Eu não dispenso a trilha sonora "(...) Pela tela, pela janela, quem é ela, quem é ela, eu vejo tudo em pedaços, remoto controle (...)". Talvez a Adriana Calcanhoto seja mesmo down. Mas quem não é, nesse mundo? E eu também vejo tudo em pedaços. Também olho no espelho e quero saber quem é ela, quem é ela. E antes de qualquer resposta, mudo de estação.

O código é bem claro: atravesse na faixa. O engraçado é que a tinta de que são feitas as faixas deve ter algum componente repelente. As pessoas correm delas, como se fossem ficar grudadas se colocassem os pés lá. A mesma coisa acontece com as passarelas, mas isso eu até entendo. Só pode ser por causa da altura. E como são estreitas! Imagine, você indo, um estranho vindo, aquela passarela enorme. Você, o estranho e duas (ou quatro) pistas embaixo. Opções: vocês passam um do lado do outro, fingindo não se notarem. Ou você é irresistível e ele se atira sobre você. Ou ele é irresistível e você se atira sobre ele. Ou ele espirra, você se assusta e atira ele lá de cima. E se atira depois, porque viu a besteira que fez. Ou não tem mais ninguém na passarela e você atravessa sem pensar bobagens.

Mas, a viagem também pode ser estrada afora, por que não? Aí, não tem paranóia. É verde, tudo verde, só muda o tom. Cana-de-açúcar, laranjas, uvas, mas um céu sempre azul, sempre o mesmo.

Seja na cidade, na estrada, qualquer lugar, sempre tem muita coisa pra ver. E o que não dá pra ver, eu imagino. E se é pra imaginar, eu tenho uma paciência sem fim.

Só não tenho paciência pra ficar pensando em acelerador-freio-câmbio-embreagem. Prefiro ler as frases nos parachoques dos caminhões. Me embalar no lusco-fusco dos pisca-alertas.

Minha carteira tem validade infinita, mas é pra carona. E eu não durmo, não! Nem babo no banco, o que já é uma grande vantagem.

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