Tema 018 - PENSAMENTOS IMPERFEITOS
BIOGRAFIA
TRAIDOR DA URBE
Alberto Carmo
Desertei, abri mão do meu espaço urbano. Deixei pra lá, quem quiser pode ficar e dele se apossar. E que faça bom proveito. Da cidade levo poucos pertences. Algumas poucas coisas úteis, que os "cidadãos" inventaram. Fico com a luz elétrica, o telefone, a Internet - utilíssima aqui, por sinal - o Banco 24 horas, lá na Capital uma vez ao mês pra pegar uns trocos, a geladeira e o freezer. Há mais que preste? Ah, as pilhas do meu farolete e para o radinho, e a TV, só pra constar.

Dispenso o asfalto, a luz na rua, as roupas inúteis, os barzinhos, os shoppings - argh - e principalmente, dispenso aquela populaça urbana, que Deus os tenha.

Dispenso os sapatos que nunca sujam a sola, dispenso os carpetes, os ambientes assépticos, o ar-condicionado, os elevadores e arranha-céus, os vidros escuros, a falta de sol e de lua, a comida sem gosto, e a enorme frescura da gente da cidade.

Dispenso o mau-humor, o estresse, a pressa sem sentido, as happy-hours e fast-foods. Dispenso também as síndromes, e a perda de tempo com análises e divãs.

Guardo saudades das livrarias, dos sebos, das bibliotecas. Os jornais os mantenho, que até aqui no-los entregam no sereno da madrugada. Mas dispenso a ganância e o consumismo ensandecido. Pois as únicas griffes, que aqui se apresentam, pertencem aos passarinhos e às flores silvestres, que ditam as cores da moda, e delas não fazem "franchising", nem lançam ações nos pregões.

Dispenso as crianças da cidade. Todas manhosas e podadas em sua criancice e criatividade. Mas recebo e abençôo a gurizada simples, que me traz mexericas e caquis, colhidas no topo das árvores, e que me chegam com olhos brilhando de afeto verdadeiro. E dou murros de revolta ao vê-los sonhar com as sandices que as "Xuxas" lhes tentam empurrar garganta abaixo pela TV agiota, que os hipnotiza e aos adultos parentes - todos tão carentes. Mas há que se viver com o lixo das cidades, há que se ter jogo de cintura e saco de elefante, e deixá-los à mercê da vida mentirosa das metrópoles. Eles se sairão bem de alguma forma, seja lá qual for. Porque trazem na alma o espírito da liberdade.

Mantenho os adultos da cidade, mas a algumas léguas virtuais, sem contatos neuróticos, nem alegrias amordaçadas. Afinal, foram os únicos que conheci na longa passagem pelos grandes becos aculturados. A todos eu prezo, e me reservo o direito da distância. Guardo todos num torcido coração, já um tanto embaçado, semidesnatado, quase desvanecendo.

Largo a cidade com uma cicatriz. A de passar tanto tempo lá buscando, embora eu sempre soubesse que só aqui eu seria feliz. Mas um tempo que me valeu tanto, porque lá eu encontrei uma alma selvagem, inquieta. Uma pedra tão rara, mescla de deusa e pantera. A mulher que longos anos me demoraria. Mas que eu, engatinhando, já tanto amava. E que me fecundou um coração novo, arteiro. Um aparelho meio digital, uma mistura de cigarro sem filtro, com um baita apetite sexual.

Como diria um certo Chico: - Eu sou funcionário, ela é bailarina. E profético anunciou: - Chegando aqui mil dias antes de te conhecer.

Assim caminham meus pensamentos, loucos, imperfeitos...

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