Tema 019 - FAZ DE CONTA
BIOGRAFIA
BRASÍLIA
Marina W

Hoje acordei pensando nela. Seu nome era Shirley. Eu morava em Brasília e os dias eram secos e intermináveis. Não chovia nunca e eu sentia tanta saudade da chuva que quando ela caía eu pegava meus filhos, ia pra rua e ficávamos girando de braços abertos, como numa música do Jorge Benjor. Nossa casa ficava no final do Lago e era longe de tudo. Acho que se não parei de fumar nessa época não vou parar mais, pois cada maço que terminava era uma novela pra comprar outro.  Às vezes eu pegava o fusquinha e ia até o armazém mais próximo, que vendia todo tipo de coisa considerada de emergência. As crianças serviam de buzina e sempre que era preciso colocavam suas cabecinhas do lado de fora e gritavam biiiiiiii! biiiiiii! Em alguns momentos pareciam trêmulas de medo, eu dirigia como se estivesse numa auto-pista de um parque de diversões. Olhando agora, não posso deixar de sentir saudades e também de agradecer a Deus por nunca ter atropelado um cachorro sequer. Shirley era razoavelmente bonita. Vestia sempre um jogging branco - ela vai me perdoar por eu não me lembrar da grife - lenço da mesma cor em volta dos cabelos e chapéu. Usava várias camadas de filtro solar e sua pele, branquíssima, mostrava o resultado de tanto cuidado. Nunca a vi de outro modo e acho que seus cabelos eram pretos.Tinha obsessão por caminhar e fazia isso cinco horas por dia.  Às vezes eu costumava encontrá-la no meio do caminho para me exercitar comela. Acontece que Shirley era esnobe mas tão esnobe que parecia uma personagem de teatro, numa peça onde eu era uma simples coadjuvante, melhor dizendo, uma espectadora. Minha participação se limitava a alguns "ohs!"e muitos "puxa!". As vezes iniciava uma frase "Eu também, uma vez ..." mas ela nunca me deixava passar disso. Shirley era uma dessas pessoas que adoram dizer o quanto são formidáveis.

"Fui arrumar meu maleiro, minha Vuitton estava mofada; tenho um armário só de jeans; coloquei tudo pra lavar e também minhas duas pilhas de abrigos; meu ex-marido deu um carro para o seu filho de quatorze anos, mas não um carro qualquer, um último tipo, importado; quando eu estava na faculdade tinha que fazer o trabalho de grupo sozinha porque era a única que falava inglês e francês, uma loucura; tive uma proposta pra morar nos Estados Unidos, o amigo do meu sogro é banqueiro em Nova York, me convidou pra morar lá, numa casa fantásssstica, uma vista maravilhooooooosa, um emprego fantásssssssstico mas eu preferi ficar; o inglês do Gustavo é perfeiiiito, o pai dele é inteligentíssssssssimo, a pessoa mais inteligente que eu já vi; Londres é uma cidade fantásssssssssstica;não vejo tevê nunca , só sei que existe o Jornal Nacional - não é Jornal Nacional o nome? "

"Um carro pra uma criança de 14 anos?!", eu conseguia dizer, chocada. "Importado",ela dizia, com um tom de voz que me lembrava que isso era apenas um detalhe e que  eu não tinha captado o espírito da coisa. Palavra de honra que Shirley era assim.

"De dezembro pra cá fiz três viagens: NY, Bélgica e Disneyword, com o Gui. Quando vou à Europa fico na casa dos meus sogros, que moram num castelo. Sou muito criativa, gosto de almoçar nos fins de semana quando já está anoitecendo, aí acendo as velas dos castiçais; o melhor corte de cabelo que eu fiz foi em Milão, sem querer, do meu lado estava aquela princesa e algumas modelos da Lancôme. Gosto de fazer um brunch aos domingos, sabe, aquele café enorme, convidar os amigos pra degustar vários pratos, trago temperos de viagens, as pessoas amam; gosto de tomar banho de banheira - banheira para dois - com o Gustavo, meu marido, a gente toma um uisquinho, trago sais de banho de viagens; meu marido não é de lugar nenhum, quer dizer, é filho de diplomatas, nasceu na Iugoslávia e foi criado em Londres e nos Estados Unidos. Em junho vou dar uma festa medieval."

O fôlego de Shirley era uma coisa que realmente me impressionava. Quando eu chegava em casa não sabia se estava exausta da caminhada ou de ouvi-la contar o seu dia-a-dia. Entrava na ducha e imaginava que  Shirley devia estar se preparando para tomar champanhe na sua banheira de espuma.

Brasília é uma cidade muito doiiiiiiiiida.

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