Tema 019 - FAZ DE CONTA
BIOGRAFIA
MOLAMBO
Viviane Alberto

A garganta arranhava, como se acometida por uma afecção.

Recostou-se na cabeceira da cama, puxando pra si o travesseiro cor-de-rosa. Mordeu o babado, como de costume. Olhando ao redor, reparava que tudo se mantinha em ordem. A irritante ordem natural das coisas que não se alterava mesmo com tudo que havia acontecido.

Como os porta-retratos podiam continuar ali, estáticos, como todo o resto? Como os frascos de perfume não mudavam de cor, não se tornavam grandes canaletas de esgoto?

Tantas coisas que não ensinam na escola. A vivência diária era como uma repetência continua, uma reprovação eterna. Notas vermelhas como o sol naquela hora. E como os olhos dela.

Nunca mais abriria as janelas. Não queria voltar a ver o sol. Ele não passava de outra mentira. Um convite falso, que se estendia pela manhã. Ópio que entrava pela pele, mudando sua a percepção da realidade e das pessoas.

As pessoas. A pior das ilusões. Uma grande história pra crianças, o faz de conta da existência humana. O que ela conhecia eram grandes organismos organizados em sociedades. Colônias de bactérias. Vírus, protozoários. E aí ela podia identificar o grande erro. Agira o tempo todo como se não fizesse parte daquilo. Como se fosse a droga de um antibiótico qualquer, capaz de sobreviver a toda sorte de ataque. Besteira.

Ela era igual a todos eles. Um tipo simples de parasita que precisava sempre se instalar confortavelmente em outro corpo, se recusava a sobreviver sozinha e por si só.

Mas era ainda pior do que isso. Era como lixo que ela se via agora. Um trapo, um molambo desses que as crianças arrastam por toda a infância, pra abandonar à imundice depois.

Imunda era essa postura passiva que a irritava agora. O trono exclusivo para a vítima se mostrava tão incômodo quanto indigno. Vítimas são essencialmente fracas e, apesar do desabamento, dos destroços, ela se sentia incrivelmente mais forte. Desamparada, mas forte. mesmo tendo sempre acreditado que isso fosse impossível.

E a sensação de força foi crescendo de uma forma descontrolada, rápida. Tomando conta da cama, do quarto, do corpo, dos babados e das pelúcias. E tudo foi cedendo espaço e inflando. Inchando até que, com um baque ensurdecedor, tudo foi pelos ares.

O estilhaçar daquele momento provocou um ruído tão agudo que fez vibrar até os cacos. E eles foram trincando e quebrando em partes cada vez menores, até que tudo que sobrou  foi pó.

E ela, que se julgara morta, assoprava agora o que podia pra longe de si. mas não tinha a mínima idéia do que estava assoprando, de onde viera a poeira que estava ali.

Olhou em volta e tudo era vazio. Mas era um vazio de sentido, porque ali havia muitas coisas. Coisas que ela tinha certeza que não eram dela.

Tentou dar um passo e caiu. E percebeu que não sabia mais andar. Tentou falar e não conseguiu, porque não conhecia o sentido das palavras, a pronúncia. Mas nada doía, nada.

Sentiu o peso de suas pálpebras e, instintivamente, as fechou. Caiu logo num sono profundo, do qual só acordaria muitas horas depois.

Estava acabado, então. E o sol continuaria a brilhar do lado de fora, mesmo com a janela fechada. E isso era bom, muito bom. Porque todo mundo precisa dele quando há muito trabalho a fazer.

E ela teria muito o que fazer, uma vida nova leva tempo pra construir. Pra isso, ela só tinha que ter coragem pra abrir os olhos. E começar.

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