Tema 020 - AMORES ILÍCITOS
BIOGRAFIA
TRIBUTO A ANASTÁCIA E GRISELDA
Helô Barros

O desconcertante foi ser reconhecida.

Ele estava chegando cada vez mais perto lendo nos meus olhos, com certeza, o segredo do meu código de barras. Záz. Um risco de luz vermelha transformando-me num mar de vergonha.

Tá, tá, fui eu. Havia sido meu o telefonema. Eram quase onze horas da noite quando ele atendeu: - Alô. Eu, como quem treina beijo de língua nas costas da própria mão desandei a falar que era a menina do primeiro colegial que vivia com as meias caindo; ele tinha me visto? Tinha sido à primeira vista, reparei nele, precisava ligar, dizer que o amava para sempre, ele que não se importasse, tudo, tudo bem, estava acostumada a levar fora, tava ligando àquelas horas, me desculpasse, tinha aproveitado que mamãe tinha saído. Sabe o que é? Ela me diz que eu não posso ficar telefonando para meninos, que é feio, sem cabimento, insiste que mulher deve se fazer de difícil, porque esses homens... eu também sabia que ele não iria gostar de mim por isso mas, aquilo não valia pontos na nota de redação ou no boletim, as outras meninas gostavam muito dele também, eu sabia que não tinha chance, por que era mesmo estava falando tudo aquilo? Pra terminar confessei: sou a que fica estudando na mesa grande do segundo andar na Cultura Inglesa. E pá, bati o telefone sem ao menos ter ouvido dele um segundo alô.

Não era pra ele ter acreditado, gostado. Entendeu? Justo eu que até aquele dia nunca havia sido alvo de um único olhar masculino sequer. Burra, tonta. A cada passo que ele dava em minha direção, era como se tirasse uma peça de minhas roupas, pondo-me rubra frente àquele amor ilícito. Pare, pare, tem gente olhando – pensei aos berros. Ele me ignorou, veio chegando mais, o sorriso quadrado de satisfação, o corpo como um tanque armado para a caça. Não era possível. Será?

Dommm. Foi como ter ouvido a primeira badalada da meia-noite. Joguei o corpo pra direita, catei a mochila, o resto dos cadernos sobre a mesa e saí correndo pelas escadas forradas de plurigoma, os dedos apalpando o corrimão com medo que o resto do corpo alçasse vôo. Saí do prédio desabalada, como num pé-de-vento. Só faltava perder o sapatinho de cristal.

Mas como? Uma Cinderela não teria usado o telefone. Ah, isso não. Também, ela tem os pés minúsculos e delicados. Para quem tem pés diminutos, as fadas madrinhas aparecem, entregam sapatinhos de cristal, carruagem e dão um jeito de facilitar encontros com príncipes. Mas eu, pés grandes e difíceis de caber em sapatos, assim como Anastácia e Griselda, ficamos na borda da história com cara de ódio descabido enquanto o sapatinho entra como uma luva no pé da doce Cinderela.

Mesmo gastando o tempo e os fundos bancários em impulsos telefônicos, eu e as terríveis irmãs, estamos condenadas à solidão do fim da história sem a mínima possibilidade de felizes para sempre. Isso sim é que é ilícito. Nós, as dos pés grandes e ódios imaturos, sabemos da vil tendência de estarmos sempre dificultando a vida de adoráveis donzelas.

Como estava dizendo, fugi do moço bonito até encontrar a rua, a esquina, o ponto do ônibus, a catraca, o troco, a escada, o corrimão, a rua novamente. Olhei para trás, ele poderia estar me seguindo. Na frente de casa girei a chave, o cadeado, a maçaneta. Entrei ventando, deslocando o ar escondido na sala naquele final de tarde, fechei a porta com o estrondo do pânico. Aliviada, olhei para o chão. Para meu espanto faltava-me um dos pés de sapato. E o mais incrível, o desparceirado nem era de cristal.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor