Tema 023 - CARPE DIEM
BIOGRAFIA
HEREDITARIEDADE
Beto Muniz
Quero escrever sobre meu filho. Tenho filhos, meninos e meninas, e vou falar sobre o mais velho. Ele não mora comigo. Mora com a mãe e a gente se encontra em alguns fins de semana. Geralmente eu ligo sondando se ele quer passar o fim de semana comigo. Ou ele liga perguntando:

- Posso ir nesse fim de semana?

Fico feliz quando ele toma a iniciativa de vir passar um feriadão comigo, mas gostaria que ele falasse mais durante nossos encontros. Ele tem estado calado desde que fez dez anos, quero dizer, ele pode estar calado a mais tempo, porém, confesso que só percebi seu silêncio após o décimo aniversário. O que será que ele quer dizer com esse mutismo espontâneo? Eu acredito mesmo que ele queira dizer algo com essa greve de palavras, não só eu acho, a mãe dele também acha. Várias vezes eu tentei falar com ele sobre isso, mas ele não me deu chances.

No último fim de semana ele veio para minha casa e no final da tarde começou a chover. Estávamos presos dentro de casa e aproveitei a chabce, tentei lhe falar sobre minhas coisas e ouvir sobre as dele... Ele se esquivou, ficou mudo olhando a chuva pela vidraça como se eu não existisse. De repente vestiu o calção e correu para a quadra, foi jogar bola na chuva. Preocupado, avisei sobre a possibilidade de um resfriado e ele finalmente falou comigo:

- Relaxa ou vem também!

- O que...?

- Aproveite o dia, pai! Encontre sempre uma maneira de aproveitar o dia...

Fiquei mudo! Esse é o meu filho. Como cresceu! Lembro que ele ainda não tinha seis anos e já fazíamos pequenos passeios de moto. Ele encarapitava na minha frente, quase sobre o tanque, e eu focalizava o retrovisor em seu rosto só para vê-lo de olhos fechados e sorriso aberto comendo vento enquanto gritava:

- Mais rápido! Mais rápido, pai!

Eu também sorria, mas não fechava os olhos. Tenho fotos desses momentos. Na verdade tenho diversas fotos dele comigo. Pelos sorrisos nas fotos, creio que passamos por bons momentos juntos. E pelo número de fotos, foram muitos... São fotos que contam nossas histórias. Numa, por exemplo, ele está todo agasalhado sentado num banco de rodoviária. O blusão da foto foi sua primeira jaqueta de motoqueiro, ele dizia. Estamos a caminho de Minas Gerais, visitar seus avós paternos. Apesar do frio que a foto sugere, ele sorri fazendo pose encarapitado na mala com rodinhas - como se ela fosse uma motocicleta. Na outra foto ele tem quase três anos e está sentado na varanda da casa de fazenda, todo sujo de terra vermelha. Tem um primo de cada lado e ele levanta o queixo como se fosse um rei entre seus súditos. E é! É meu reizinho sujo de alegria fazendo bico para foto. Nesse período de nossas vidas ele falava tanto que às vezes eu fingia não escutar, mas ele continuava falando. Então eu dizia que ele falava mais que a boca! Será que por isso se calou?

Enquanto esperava a chuva passar fui repassando as fotos. Talvez encontrasse nas imagens do passado respostas para essa reclusão pré-adolescente. Numa foto ele está sentado na grama, se afastou do mundo e dirige toda sua atenção ao sorvete em suas mãozinhas. A foto foi tirada durante um passeio no zoológico. A primeira vez que ele viu camelo, girafa, elefante, leão e outros animais e, também, a primeira vez que está tão ausente de mim. Nem percebeu quando foi fotografado... Logo ele que sempre fazia pose! Fechei os álbuns e rebusquei na memória alguns dos tantos momentos vividos com meu filho mais velho. Será que ele lembra dos detalhes como eu lembro? Ele tem boa memória e é muito inteligente. Fiquei orgulhoso quando soube que num teste de QI ele superou a média. Assim como fiquei orgulhoso quando ele me fez, em minutos, um trabalho usando um software que eu não dominava. Ele dominou. Aliás, tudo que ele pega pra fazer faz bem feito. Quando quer! Quando não quer fazer fica vendo TV e rindo. Ri feito besta de todas as cenas nos desenhos animados. Sim, com certeza ele se lembra de tudo... E se tem tantas lembranças boas quanto eu, então é feliz!

Será que ele está fazendo pose para a vida e eu não percebi que ele só quer aproveitar o dia? Eu repleto de anseios, preocupado em falar sobre coisas fúteis e ele zombando calado dessa minha angústia. Acho até que sempre vislumbrei um riso por detrás desse mutismo calculado! Ora veja! Ele ri de tudo e de todos, como se a vida fosse uma eterna observação do alheio. Pelo jeito, ele tem prestado muita atenção em tudo à sua volta e se preocupado pouco em contar tudo que vê. De que pai ele herdou essa mania de olhar e fingir que não está vendo nada mais que as aparências? A diferença é que eu falo e escrevo sobre tudo que vejo e ele fica calado... Não fala e nem escreve. Vai ver meu primogênito ainda não descobriu que pode registrar os dramas e as comédias da vida.

- Aproveite o dia filho, teus segredos foram desvendados!

Finalmente ele percebe que o estou observando através da vidraça, e corre por entre as poças d'água comemorando mais um gol... É pose!

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