Tema 023 - CARPE DIEM
BIOGRAFIA
FÊNIX
Luís Valise

Acordou novo em folha. Corpo descansado, boca limpa, cabeça leve e lúcida. Saiu devagarinho da cama, queria aproveitar cada sensação daquele dia de forma especial. Abriu a janela e um céu azul encheu seus olhos de esperança. Vestiu o agasalho mais bonito e saiu em direção ao grande parque da cidade, onde outras pessoas felizes como ele estariam correndo e sorrindo para as pequenas coisas que preenchem um coração justo. Não mais que dez minutos e já encontrara a bunda que o incentivaria pelos próximos trinta. A morena de cabelos curtos à sua frente decerto sabia o efeito que o shortinho de lycra prateado provocava, e se divertia brincando de cenoura pro coelhão esbaforido que vinha atrás. Mas aquele parque também era freqüentado por outros animais, e ele viu se aproximando em sentido contrário a ignorância musculosa trazendo na coleira a besta com os caninos expostos. Esqueceu-se da bunda, concentrou-se no cão, e ao se cruzarem instintivamente desviou o trote para a esquerda, seus olhos nos olhos do cão e ploft!, o tênis de marca afundou num monte de merda fresca produto de outra besta. O cheiro imundo entrou pelas suas narinas, conteve o vômito na garganta, a cenoura prateada sumiu pra outros coelhos.

Depois do banho a gravata de finos fios dourados sobre fundo azul lhe conferia elegância. No trabalho o telefone não parava, as tarefas lhe dando imenso prazer, a sensação de eficiência estufando o ego. De quando em quando chamava a secretária nem tanto por necessidade, mais pelo discreto desejo que o cheiro da colônia e o roliço do braço lhe despertavam. Tratavam-se com simpatia, boa vontade, e um não-sei-quê no olhar que nunca passava disso. A manhã voara, a tarde já ia em meio quando ela entrou na sala com o recado: o Homem está chamando. O Homem. Era assim que confidencialmente tratavam o chefão.

Seu olhar estava para além Dele, observando a fotografia da Família a bordo de um iate. Toda a sala era decorada com extremo bom-gosto. A Voz traçava espirais em torno da sua cabeça enquanto ele notava detalhes: tacos de golfe, diplomas na parede, “... e o senhor está acima das possibilidades que esta empresa pode lhe oferecer. Por isso, e em reconhecimento à sua capacidade, estou dispensando-o. Por favor, passe no departamento pessoal, onde suas contas já estão prontas.” E havia tanta sinceridade na Voz que ele não teve outra reação senão agradecer e sair pisando firme nas bordas do abismo à sua volta.

O carro reluzente chamava a atenção por onde passava e suas prestações subitamente pareceram maiores. Ia em direção a ela, nos braços de quem poderia desabafar e de quem ouviria palavras de carinho e acalanto. Desde que a conhecera seu mundo passara a fazer sentido, a ponto de chegar mesmo a crer na existência de um ser superior, já que outra explicação não encontrava para a bola de fogo que se formara em seu peito. Chegando à sua casa e antes mesmo do beijo ansiado foi logo dizendo “tenho novidades”, e nem teve beijo pois ouviu de volta “eu também”. OK, você primeiro, e ela não se fez de rogada: conheci alguém. Ele ficou em silêncio tentando entender (ou não entender) o que aquilo queria dizer. Ainda brincou: é namoro ou amizade? Ela cortou: é amor. Mais um pouco e a bola de fogo transformara-se em bola de fel e ele dirigia de volta, vontade de não chegar. Parou o carro em cima de um viaduto. Desceu, chegou-se perto da amurada e olhou para baixo. O fel do peito deu lugar a uma vertigem, era alto, quanto tempo levaria até lá embaixo? Fez um retrospecto de sua vida, respirou fundo, fechou os olhos e deu uma cuspida para o infinito. Amanhã seria outro dia, talvez um dia muito especial.

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