Tema 026 - MORRER DE AMOR
BIOGRAFIA
A "LEITE COM MAÇÃ"
Lisa Simons

Lacan deu à obra de Freud uma estrutura Filosófica, ele sabia manejar como poucos a técnica de "figuração pelo contrário". Certa feita, definindo o amor ele utilizou-se do seguinte chiste: "O amor é dar o que não se tem a alguém que não o quer".

Infelizmente ele, no seu humor corrosivo, tinha razão. Como dar amor se não se tem amor próprio? Como acertar na escolha da cara-metade e não sofrer as habituais rejeições? Quantas frustrações o amor nos impõe, ou pelo menos o que pensamos ser amor? Quantas humilhações... Disfarçar esse sentimento que nos envolve por completo é praticamente impossível, ele é ruidoso, necessita de ser exteriorizado.

Na realidade o amor que sentimos é quase sempre infantil, onde estamos preocupados em satisfazer algum sentimento mal resolvido no passado, transferindo ao objeto de nosso desejo as expectativas que ficaram adormecidas. Amor maduro, responsável, compartilhado de maneira sadia e edificante seria privilégio de bem poucos.

Quando amamos errado ficamos ridículos, somos capazes de sacrifícios terríveis, nosso Deus é o ser amado, nossa visão do mundo fica distorcida como se tivéssemos utilizado uma droga poderosa. Somos capazes até, imagine, de preferir a morte a ficar sem o objeto de nossa paixão.

Possuídos do amor infantil morremos todo dia um pouco e a história de Celina, uma querida amiga dos tempos do Instituto de Educação, e seu amor incondicional pelo único namorado, Pedro Ivo, ilustra muito bem esse sentimento inquietante e devastador.

Das alunas de minha classe, ela, certamente não era a mais bonita e tampouco a mais inteligente, entretanto, chamava a atenção pelos cabelos longos e ruivos, os olhos furta-cor e a alvura da pele, levemente sardenta, que a deixava ainda mais atraente. Difícil era passar despercebida aonde chegasse.

Celina tinha duas irmãs, que embora apresentassem os mesmos traços de seu rosto oval, não possuíam os belos cabelos ruivos e o mesmo tom de seus olhos. Por outro lado, enquanto ela sofria com a balança, pois tinha tendência a engordar, as irmãs eram magras ao extremo e não escondiam a inveja que lhes despertavam as pernas roliças e as nádegas salientes de Celina.

Quando conheceu Pedro Ivo, Celina mais parecia ter sido contemplada com o primeiro prêmio da mega-sena, tamanho era seu euforismo. Nada e ninguém mais importavam para ela. Tudo que fazia tinha um único objetivo: agradar Pedrinho, como ela o chamava. Aliás, a ele somente se referia utilizando o diminutivo: era o meu amorzinho, o meu bichinho, a boquinha do meu fofinho, os pezinhos do meu neguinho... Chegava a enjoar o modo como ela o tratava.

Pedro Ivo, diferente dela, era quase sempre ríspido, buscando encontrar em tudo que a pobre fazia para agradá-lo um mínimo defeito. Nada ele deixava por menos.

Certa vez o casal foi me visitar. À época, eu era solteira e morava com minha mãe, uma excelente cozinheira. Assim, depois de lembrarmos os tempos da escola, ela logo foi convidando pra um lanchinho. O perfume dos pãezinhos quentes, do bolo de milho e do café passado na hora tomavam conta de nossa casa. Os olhos de Celina já brilhavam, antecipando a degustação, mas quando foi pegar o primeiro pão-de-queijo, o namorado segurou-lhe a mão e disse:

- Celina! Você não está podendo abusar das massas!

Sem questionar, a infeliz agradeceu as delícias, servindo-se tão somente do café, mesmo assim com adoçante, enquanto Pedro Ivo fartava-se em devorar praticamente metade do bolo e meia cestinha dos pãezinhos.

Aquela atitude indignou-me e não pude deixar de comentar:

- Celina você tem um corpo ótimo, não precisa fazer tanto sacrifício assim, um pãozinho de queijo não é nada!

Ela discordou prontamente, alegando que Pedrinho gostava de mulher miúda, sem nenhuma gordurinha sobrando.

Sim, essa era a vida de Celina: passar fome e experimentar todos os regimes criados pelos endocrinologistas e curiosos. Era a dieta da lua, da sopa, eram os chazinhos emagrecedores, os "diet-shakes"... Tudo que aparecia nas revistas ou era recomendado por amigos, lá estava Celina servindo de cobaia. Ela só tinha um único objetivo na vida: agradar seu amor, que para seu infortúnio, só gostava das muito magras.

Por outro lado suas queridas irmãs, que secavam de tanto despeito, faziam contribuir ainda mais com os caprichos de Pedro, não poupando Celina com suas observações cretinas:

- Celina, você engordou um pouquinho nas férias!

- Sabe que essa roupa deixa você mais gordinha?

- É melhor usar calças mais folgadas, porque você tem muito quadril e pernas grossas demais.

Ela continuava na sua obsessão de emagrecer a qualquer custo para agradar o namorado, até um dia ficar sabendo de mais um regime milagroso: LEITE COM MAÇÃ!

É esse, pensou, esse vai dar certo! Ela adorava maçã e leite mais ainda, era uma verdadeira bezerrinha! Assim, logo se entusiasmou com a possibilidade de perder aqueles quilinhos que atrapalhavam sua silhueta e que Pedrinho não suportava.

Numa segunda-feira iniciou a rotina: pela manhã, uma maçã e um copo de leite. Na hora do almoço: duas maçãs, dois copos de leite. Idem à noite.

Depois de três semanas exclusivamente nessa dieta, Celina estava bem mais magra. Ao se olhar no espelho, de perfil, constatou que seu bumbum já não era tão empinado. Pedro Ivo, contudo, ainda se mostrava insatisfeito e, portanto, ela também não podia estar; continuou, então, a dieta absurda.

Algum tempo depois, Pedro terminou o namoro. Celina se desesperou, certamente foi seu corpo, ela justificava, ela ainda não havia emagrecido o suficiente para agradá-lo.

A família já estava ficando preocupada, há três meses Celina só se alimentava de leite com maçã. Recusando qualquer outra coisa.

O interessante é que ela, que nunca gostou de cozinhar, passou a anotar e executar todas as receitas dos programas de culinária, principalmente os doces.

Seus amigos se admiravam: como ela podia fazer tanta coisa gostosa e nada comer? Celina demonstrava um prazer enorme em servir suas tortas carameladas, seus pastéis de nata, coxinhas de galinha e não experimentar unzinho sequer. Continuava o regime, rigorosamente: maçã com leite, leite com maçã. No café, no almoço, no jantar.

O fato é que diante da recusa em se alimentar adequadamente, e da magreza assustadora, seus pais resolveram interná-la no hospital. Ali era assistida por psicólogos e vez por outra aparecia um evangélico fazendo a leitura da Bíblia e tentando persuadi-la a comer, com cânticos e muita reza.

Quando eu a visitei, passados quase dois anos do início da dieta da maçã com leite, ela já estava em casa, que fora toda adaptada à sua nova situação. Cama hospitalar, suporte para soro, oxigênio.

Encontrei-a deitada na sala (o lugar mais ventilado e amplo que havia para recebê-la mais confortavelmente). Ali ela exibia sua magreza esquálida. Seus cabelos, antes ruivos e brilhantes, eram agora de um castanho indefinido, opacos e ralos. Seus olhos estavam embaçados e sem cor. A pele amarelada havia se enrugado. Ela aparentava ter uns cinqüenta anos mal vividos, quando sua idade cronológica era apenas vinte e sete.

Todas as tentativas de curar a aneroxia foram em vão. Ela se recusava a comer e quando recebia o soro, que a restabeleceria parcialmente, ela fazia uso de laxantes e diuréticos para expelir tudo aquilo que significasse recuperar peso.

Um dia ela teve uma melhora inesperada, conseguiu sair da cama, deu uma volta no quintal da casa e atravessou a rua para comprar pão. Na volta, desmaiou sobre o jardim, já sem vida, parecia um passarinho.

Pedro não foi ao enterro, mas mandou um lindo buquê de rosas amarelas com seu nome gravado.

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