Tema 028 - MEIA PALAVRA
BIOGRAFIA
DE PALAVRAS E SILÊNCIOS
Gesimário
Eu lhe dizia que..

Agora que não é necessário mais revelar esse quase segredo, porque o temos estampado nos olhos e nos gestos... Eu te amo, lhe dizia sempre, entre o abrir de portas dos veículos, o café da manhã, o telefonema no escritório. Eu também te amo... ouvi por alguns anos com o adereço do brilho sempre mais vivo dos seus olhos. Assim fomos construindo, sem sobressaltos ou dores mais profundas, o que somos para o outro. Cúmplices de invenções e pequenos rituais encantatórios (como se fosse necessário... e era, saberíamos depois, nos menores padecimentos, visitas esporádicas da tristeza, cicatrizadas, enfim...)

Eu lhe dizia...

Não basta que tenhamos as chaves das portas sem o consolo da nossa presença. Os discos, nossos livros, originais de poemas... aquele lençol de cetim verde-claro tão fresco como água de colônia deslizando em seu pescoço; a mesma balada leve no velho aparelho de som. Nunca precisamos dizer mais do que isso. Mesmo no dia em que você ameaçou de ir embora  (e até foi, sem nunca ter saído daqui...), seu gesto foi de esquecimento. Não pôde desprender-se da permanência absurda do convívio. Não podia partir porque nenhuma palavra foi pronunciada e os olhares negavam aprovação. Ou mesmo eu, quando quis negar-nos, quando permiti (e como lamento, me culpo e penitencio)... quando permiti na feição serena dos porta-retratos, o sorriso de escárnio da dúvida.

Eu lhe...

Trouxe-lhe esse presente pelo dia do nosso aniversário. Parece que foi ontem (essa e outras coisas repetidas sem medo). Parece que foi ontem... Essa matéria escassa, pulverizada, tão abstrata que é o tempo, que mal podia nos fazer? Nunca tivemos reservas para o futuro, nada que pudesse ser submetido ao infortúnio de o dia não amanhecer. Essa alegria plena, feita com a matéria pura do agora. Eis porque essas coisas em redor sempre se alimentaram melhor de silêncio e de olhares. Tudo é cria de uma lição lenta e afetuosa, férteis que estão da melhor seiva das nossas vidas.

Eu...

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