DNA MARCADO
Luiz Fernando Kiehl
 
 
Eu só descobri que tenho um sósia há pouco tempo. Os companheiros do escritório viram num jornal popular o retrato falado de alguém que havia estuprado uma mocinha no banheiro feminino de um cinema e ficaram me gozando, dizendo que o tarado era eu. Por sorte minha, o atentado tinha sido às três da tarde de um dia útil e todos sabiam que naquela hora eu participava de uma reunião com mais seis pessoas. Se não, poderiam até desconfiar de mim, porque o desenho parecia mesmo comigo.

O assunto já tinha morrido quando, cerca de quinze dias depois, vi uma cara conhecida no metrô da Paulista, em pé, a poucos metros de onde eu estava sentado. Fiquei olhando e pensando de onde eu conhecia aquele sujeito bem vestido. Até que me deu um estalinho: aquela cara eu via todos os dias no espelho do banheiro de casa. O seu cabelo, liso e repartido no lado esquerdo como o meu, tinha exatamente o mesmo tom de castanho. Nós dois usávamos barba e, por incrível que pareça, a dele crescia no mesmo sentido que a minha, do queixo para trás, na direção das orelhas. Seu nariz era meio arrebitado como o meu e até os nossos corpos musculosos eram semelhantes. A única diferença é que ele seria uns dez centímetros mais alto. Talvez fosse três ou quatro anos mais moço do que eu, não mais.

Percebi que ele ia descer na estação Augusta e não resisti à tentação de segui-lo, só para ver aonde ele ia, descobrir onde trabalhava ou sei lá para quê. O meu sósia entrou no Conjunto Nacional e parou no guichê de um cinema. Só naquele momento me lembrei das brincadeiras dos colegas sobre o estuprador. Sem saber o que fazer, passei direto enquanto ele entregava a entrada ao bilheteiro. Na certeza de que ele não me viu, fiz a volta no quarteirão e segui a pé para o escritório, a duas quadras dali.

No dia seguinte, não deu outra: os jornais repetiram o retrato falado na primeira página com a manchete: "estuprador do cinema ataca novamente". O modus operandi foi igual ao anterior. Pelo menos, o cara não matava as garotas, violentava-as no silêncio do sanitário vazio e se mandava. Não contei a ninguém do escritório que, na véspera, eu havia visto o meu sósia entrando naquele cinema, mas, como era de se esperar, o pessoal se divertiu à minha custa.

Na noite seguinte, fui jantar na casa de meus pais e tirei um sarro do velho, perguntando se ele não teria tido um caso com alguma mulher uns três anos depois que eu nasci. Minha mãe não gostou da brincadeira de mau gosto e o meu pai, muito sério, mudou logo de assunto. Naquela mesma noite, achei mais prudente raspar a minha barba. O fato não passou despercebido no escritório, o que deu margem a mais uma onda de brincadeiras, com o pessoal dizendo que eu estava com medo de ser confundido com o estuprador. Mal sabiam eles que o motivo tinha sido esse mesmo.

Dias depois, uma amiga me contou ter visto um cara muito parecido comigo numa livraria, comprando uma dessas revistas masculinas. Ele estava de costas e só ao se aproximar foi que ela percebeu que não era eu.

- A semelhança era incrível, cara, poderia até ser seu irmão gêmeo. Até a cor dos olhos azuis era igual à sua.

Ontem foi domingo e resolvi comprar umas roupas no shopping enquanto a minha mulher levava as crianças a uma festa. Quando dei por mim, estava seguindo uma garota de uns quinze anos, muito loura e muito linda, que caminhava sozinha pelos corredores vestindo uma saia curta que revelava suas belas pernas e uma blusa leve, através da qual eu adivinhava os bicos de seios bem durinhos. Ela parou na fila de um cinema e eu, ainda sem saber porque estava fazendo aquilo, me postei atrás dela. Já ia comprar a entrada quando vi o meu sósia sentado na sala de espera. Ele também havia raspado a barba, mas não tive a menor dúvida de que era ele. Perturbado, saí da fila e entrei numa loja. Cheguei a pensar em avisar o segurança, mas desisti, pois achei que só iria passar por maluco e arranjar confusão para o meu lado. Afinal, aquilo tudo poderia não passar de uma grande coincidência.

Hoje não fui trabalhar nem tive coragem de olhar os jornais. O senhor acha, doutor, que eu estou precisando de ajuda?

 
 
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