ATLÂNTIDA, PÁTRIA AMADA, IDOLATRADA, SALVE, SALVE!
Alberto Carmo
 
 
Alguns meus colegas de auditório têm-me dito que ando muito amargo, que critico a tudo e a todos. Que pareço um trator não querendo deixar pedra sobre pedra.

Bem, se Picasso teve lá suas fases e períodos, do azul ao rosa, do cubismo ao clássico, eu aqui reivindico meu direito de ter as minhas e os meus.

Peço licença para impetrar meu período, não rosa, que é coisa de boiola, mas roxo - roxo de raiva.

Também pudera, não bastasse minha TV ter pifado, o que, segundo uma deusa que habita minhas visões, tornou-me mais calmo, aumentou meu Q.I. e meu ISO 9000, como garantir qualidade total se, a cada manhã, chega-me o jornal a me saturar de crises, dilemas, bichices, maracutaias, negociatas e futebol de má procedência?

Passo por um drama draconiano, ao tentar decidir se renovo a assinatura do inimigo periódico. Já pensei em trocá-la pela da turma da Mônica, Notícias Populares, por algum gibi alternativo, ou newsletters da Telefonica sem acento.

Mas muchachos, já me isolei do mundo e suporto o terrível calabouço de não ter uma padaria por perto. Bancas de jornal só as tenho pela Internet, pão francês já virou coisa do passado, entupo-me de cigarros paraguaios, que me dão a impressão de que, finalmente, estou comendo grama, ou melhor, aspirando.

Está certo que tenho a lua, e cintilantes sóis, povoando a moldura noturna da minha janela, que passo as tardes trabalhando na companhia de jataís, que habitam um condomínio pendurado na varanda, que o sanhaço aprisionado no alçapão insiste em não deixar a gaiola aberta em troca do alpiste de cada dia, que ver as garças e os paturis cuidando das proles na beira da água me fazem perder uma ou duas gotas, que depois reponho na base do colírio.

Concordo. Tendo tudo isso, como arrancar os cabelos, dar gritos de terror, chutar a bunda de uns e outros, botar chiclete nas madeixas de doces senhoritas, puxar a gravata de esforçados funcionários, e atiçar as lombrigas de acomodados contribuintes?

Porque algo há que me incomoda. Ora direis: - Os incomodados que se mudem, a porta da casa é serventia de todos! E digo eu: - Onde buscar abrigo, se os ecos das cidades espalham-se mais que gases num quarto fechado? Onde encontrar sossego, se os lamentos, as lamúrias dos que insistem na cegueira voluntária ficam a zumbir nos meus ouvidos? Onde acreditar em boas intenções, se vejo uma juventude que pratica agiotagem desde o vestibular? Onde agir de boa fé, se passaram a medir a felicidade em termos monetários, ou a nível de poder aquisitivo, como diriam os incautos.

Como ficar calado, ao ver um turbilhão de semi-adultos a disputarem balcões de shoppings, exibindo etiquetas e marcas, como se isso os transformassem instantaneamente em "gente que deu certo?" Como calar a boca diante de povos que semeiam a guerra, enquanto tentam nos comover com passados mal explicados? Como deixar em paz a vara de espertinhos que vivem à caça de oportunidades, e nos tentam enfiar goela abaixo um suco de qualidade duvidosa, de livros a absorventes íntimos?

E, principalmente, como ficarmos neutros, diante de tantas vozes que clamam por justiça - excetuando-se aqui grupetos de sem-terra, sindicatos, incompetentes em geral, e aproveitadores. Falo das vozes roucas, cansadas, teimosas, que insistem num admirável mundo novo.

- Shangrilá, atlantes! Rumo ao horizonte!

 
 
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