PERDEU A VIDA...
Felipe Lenhart
 
 

...num jogo de futebol. Pode ser que antes mesmo, num baile, numa festa de arromba ou em passeio pelo centro da cidade. Costumava cantar debaixo do chuveiro, costumava rezar antes de dormir, costumava se benzer, se persignar solenemente ao se deparar com uma cruz. Tinha uma pinta no pescoço, o que sempre fora motivo de gozações, e de pânico na frente do espelho. Sonhava com a mulher amada, com um livro editado, um best-seller momentâneo e explosivo, um artigo polêmico, fama e dinheiro, mulheres e alguma paz pessoal. Um dia soltou um peido num elevador, onde estavam mais três pessoas, e foi o primeiro a reclamar, alegando que aquilo era uma falta de respeito, um disparate dito com a bunda. Uma falta de vergonha foi o que exclamou quando viu pela primeira vez um programa do Ratinho, e a fina flor da intelligentzia disse ao fim de um Roda Viva. Adepto de pensamentos típicos da esquerda, da festiva, pensava-se culto e refinado, sabia que Rembrandt tinha nascido na Holanda nos idos de 1600 e que Dali havia nascido na Espanha, ou em Portugal? Tinha lapsos misteriosos de esquecimento, confundia os ditados, misturava-os impunemente. Vestia-se com apuro, elegância, roubava frutas na casa do vizinho quando era pequeno. Seu primeiro beijo ele roubou de uma colega do primário, beijo molhado e sutil, muito diferente dos batons que topou pelo caminho da vida. Casou-se com uma bela morena, tiveram os dois cinco filhos sadios e bem dotados fisicamente. Ao surgirem na imprensa as notícias da clonagem humana, contava aos amigos que certamente iria vender seu esperma aos bancos de esperma, e que com seu esperma muitas crianças como os seus filhos iriam ser produzidas. Perdeu a vida num jogo de futebol, do qual não gostava, mas foi assistir porque um de seus filhos estava em campo. Pai coruja. E a arquibancada desabou em cima do povo. Perdeu a vida soterrado, mas orgulhoso do caçula. Perdeu a vida num jogo de futebol.

 
 
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