CABELOS DE MEL
Lisa Simons
 
 

Quando não são as pessoas é a própria vida
que se encarrega de sabotar nossos amores

Minha primeira lembrança uma perda. A bolinha cor-de-rosa e transparente entre os dedinhos e eu a lambendo, prazerosamente. Em seguida jogando a pequena esfera, batendo palmas e deliciando-me ao vê-la quicar tantas vezes no piso de madeira, antes porém, que ela rolasse no assoalho eu estendia os braços tentando alcançá-la em pleno deslocamento. Era meu único brinquedo.

Minha prima, um pouco mais velha, tomou-me a bolinha colorida esmagando-a entre os dentes. Eu ainda tentei reaver o movimento atirando-a com força ao chão, mas ela frouxa não obedecia ao meu desejo. A frustração me encheu de ódio e enfurecida agarrei a prima pelos cabelos e mordi-lhe a bochecha deixando as marcas dos incisivos de leite. A danada abriu um berreiro e os adultos a acudiram me recriminando:

- Deus como é má essa menina! Veja o que fez no rosto da outra!

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Aos seis anos, ao revelar orgulhosa a descoberta que Papai Noel não existia e na verdade era o pai quem dava os brinquedos, fui severamente punida com a decisão: Já que não acreditas em Papai Noel não ganharás o presente escolhido e sim objetos necessários (roupas, sapatos, livros) e assim se fez. Nada da boneca "Soneca" que há muito esperava. Revoltada com a discriminação destrui o trenzinho do irmão caçula e cortei com tesoura a tenda indígena do mais velho.

Não tendo bonecas apeguei-me a um gato, chamei-o Zeca Tatu. Vivia agarrada com ele, até ter a agradável surpresa: ele era ela e estava prenhe. Arrumei uma caminha numa caixa de madeira e fiquei esperando a chegada da cegonha, mal dormia de tanta ansiedade. Nasceram cinco gatinhos lindos, malhados, logo me apaixonei sentindo-me a mãe dos bichinhos. Meu gato, agora gata, acabou por me arranhar tamanho o desvelo que eu tinha com seus filhotes. No dia seguinte desapareceram com ele (ela) e junto os três gatinhos. O trauma foi tamanho que nem conseguia chorar, apenas me recusava a comer, uma forma de punir meus pais pela chacina e isso durou meses.

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No ginásio conheci o primeiro amor, um garoto que também estudava no Pedro II, último ano, não era assim tão bonito, nem rico, nem o mais brilhante, contudo no momento em que surgiu um interesse entre nós, uma colega de classe, até então minha amiga, resolveu dar em cima dele. Ela era mais alta, belos seios, olhos verdes enormes, ele sucumbiu e eu me vi sozinha com minhas poesias e ressentimentos. O namorico entre os dois acabou rápido. Eu, entretanto, nunca a perdoei, em minha casa ela não mais foi recebida e só consegui apagar aquela mágoa quando lhe sujei a "barra" com um possível pretendente.

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Minha filha foi esperada com amor, imaginava-lhe os olhos, o sorriso, vestia suas roupinhas em pensamento, decorei seu quarto pintando as paredes de azul e branco, aqui e ali, nuvens, estrelas e anjinhos de carinha redonda. Optei por um parto natural, nada de cortes e anestesias, queria estar lúcida para recebê-la. Ela veio ao mundo tão rápido que as dores logo esqueci, inebriada com sua chegada não parava de rir, a emoção de ser mãe era inigualável, jamais havia me sentido assim tão completa. Seus cabelos fartos, cor-de-mel, foram logo enfeitados com um minúsculo laço verde-água, ela demorou a sair da maternidade, ouvi alguns murmúrios, mas tudo ignorei só esperando a hora de poder tê-la em meus braços e amamentá-la, tranqüilamente.

Quis a vida que esse sonho acabasse, gravou no coração de minha menina um defeito e ela teve que ser conduzida a uma cirurgia absurda e agressiva que lhe tirou a vida, aos dez meses de idade. Ela passou a ser apenas um anjo dos muitos que recebi de presente, antes de sua vinda, um daqueles que pintei no quarto e depois cobri com três espessas camadas de tinta.

 
 
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