BODAS DE PRATA
Mariazinha Cremasco
 

 

"Ele faz o noivo correto e ela faz que quase desmaia.
Vão viver sob o mesmo teto até que a casa caia"*

Ela gostava tanto de beijar. É bom beijar. Sentir a presença. Cumplicidade. Através do beijo. Desejo. Porém, à medida em que o tempo foi passando beijavam-se cada vez menos.

Faziam religiosamente as mesmas coisas, todos os dias. Cada qual com suas manias.

- Odeio a risadinha esquisita do seu irmão.

- É? Detesto a cara exageradamente pintada da sua irmã, aquela linguaruda.

- Seu irmão é um fracassado!

- Você está mal de família, heim?

Ela vivia a vida num ritmo rápido demais para o gosto dele. "Quem casa quer casa".

"Ele é o funcionário completo e ela aprende a fazer suspiros.
Vão viver sob o mesmo teto até trocarem tiros"*

Releu os cartões dele, aqueles do tempo em que ainda mandava flores. Ficava tão feliz com esses pequenos e espaçados mimos. Notou já naquela época ele era frio. "Precisamos comer muitos quilos de sal pra nos conhecer". Pensou que já tinham comido toneladas de sal durante os anos de casados e ainda eram estranhos.

Ah, essa emoção ainda a mataria. Vontade de chorar. Por que hoje estava recordando só coisas infelizes? Vida. A vida é sonho? A vida é recordar, renovar, recomeçar. Recomeçar de onde? De que ponto? Melhor deixar como está. "Comeu a carne? Agora que roa o osso!".

Ela queria aplausos. Recebia críticas. Queria brilho. Recebia mais críticas. Queria ouro e recebia bronze, isso se recebesse. Ah, imagens da vida. Planos de vida. Balanço de vida. "Quando a miséria entra pela porta, o amor sai pela janela"

Tudo o que ele queria era sossego, ficar quieto. Não queria ser questionado, assediado por nada. Televisão era tudo o que precisava para ficar bem. "Desliga esse rádio!".

Quantas coisas nas prateleiras da memória. Somos o presente. O jantar está na mesa. Silêncio. Falta de espaço. Todos os dias são assim. Ele tenta não reclamar. Ela quer brigar com Deus. "Existe uma linha tênue entre o amor e o ódio".

"Ele fala de cianureto e ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto até que alguém decida"*

Está chovendo. Ela pensa em que cor de esmalte deveria passar nas unhas. Pergunta a ele sobre a renovação do seguro do carro. Ele não ouve, mas reclama da chuva. Amanhã vai ter enchente. Ela pensa na camisola nova que viu na loja. Continua precisando de brilho, aplauso. Ele não liga para essas coisas. "Te prometo ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença".

O homem que ela um dia amou não é mais o homem que ela ama. Ela também já não é a mesma mulher. Não riem juntos. Sequer choram juntos. Mas pelo menos ainda brigam de vez em quando. Assim sentem-se vivos. "Falem agora ou calem-se para sempre".

Razão, emoção, paixão, tesão, amizade, cumplicidade. Cada um dentro de si, calado, trancado. Almas esmigalhadas. Migalhas. "Migalhas dormidas do seu pão. Raspas e restos me interessam". Interessam?

Casamento. Seria como aquela piada? "Casamento é como a Avenida Paulista: começa no Paraíso e termina na Consolação".

"Ela esquenta a papa do neto e ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto até que a morte os una"*

 

* O casamento dos pequenos burgueses - Chico Buarque, 1977/78
 
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