MACHUCA, DÓI, MAS A GENTE APRENDE
Regina Borges
 
 
Tributo ao pianista João Carlos Martins, que perdendo o
movimento de uma das mãos ensinou-nos a arte do Recomeçar.

Certa vez meu avô paterno disse-me que saber perder era uma arte e que a própria perda era uma espécie de Sócrates a nos ensinar a partejar as idéias e aprendizados. Ele tinha razão. Não era um homem cheio de letras e leituras, mas tinha sabedoria de vida.

Enfrentar um processo de perda é doloroso, principalmente quando essa perda redunda na morte de uma pessoa a quem muito amamos e respeitamos.

Já coleciono no armário da saudade perdas que machucaram minh’alma, deixando feridas que muito doeram... Algumas foram cicatrizadas pela ação do tempo, outras ainda estão abertas, profundamente infeccionadas.

A arte de saber perder é um aprendizado doído, que praticamos com mórbida persistência.A cada dia que passa, vamos acumulando perdas, das mais pueris e singelas às mais contundentes e avassaladoras.

- Já observaram quantas coisas perdemos todos os dias?

Perdemos chaves, documentos, o ônibus para o trabalho, o avião, o trem, o navio, o show, o piquenique, a sessão de cinema, o concerto, a ópera, o teatro... Perdemos horas e horas preciosas de nossos momentos com discussões frívolas e irrelevantes...

Perdemos consultas previamente marcadas, reuniões na escola de nossos filhos, faltamos a compromissos agendados.

Perdemos a vontade de viver quando estamos estressados e deprimidos e já não mais acreditamos em nossos sonhos. Perdemos esperanças... Perdemos o interesse pela vida.

- E a perda da consciência, quando entramos num profundo e letárgico Coma?

Só quem já passou por uma experiência destas pode avaliar a importância do tempo e a misericórdia de Deus.

A falta de siso ou razão impede-nos de agir com sabedoria.Quanto erro comete o ser humano no seu egoísmo e orgulho.

Quantos de nós já perdemos o viço e a beleza, os movimentos e a sensibilidade... Partes do esqueleto, a saúde que afogamos numa vida desregrada embebida nos embalos dos vícios e noitadas?

A morte rouba-nos os amigos, parentes, elementos importantes de nossa família.

Alguns de nós conseguimos até perder a identidade de indivíduo solapada nos crimes, drogas, prostituição, bebedeiras e glutonarias...

- E quando perdemos a crença, a fé? Tudo parece vazio...

Perdemos livros e a vontade de ler... Cadernos e a vontade de escrever... Perdemos chances de escrever belos textos por falta de inspiração. Perdemos objetos de estima em enchentes e incêndios.

Perdemos peso, perdemos vergonha, moral ética, a soberania nacional nas disputas territoriais, perdemos nossos direitos de cidadãos na arbitrariedade dos regimes ditatoriais.

De repente, a pessoa a quem se ama desaparece de nosso convívio. Como sofremos!

Quantas oportunidades escapam de nossas mãos... Ficamos desempregados, perdemos nossa casa, nosso animalzinho de estimação

A perda é cíclica e repetitiva. O fato de eu estar aqui nesta exaltação cansativa do verbete é só para ilustrar que é cotidiana... Repete-se... Tira-nos a força da luta, mas felizmente não consegue destruir-nos. E é justamente ai que entram a determinação, a coragem, a fé. Nas horas cruciais de fragilidade somos intimados a agir com prudência, com amor, com resignação, com intrepidez.

Perdemos o olfato, a visão, o paladar, a audição. Perdemos os sentidos.

Ao nível de país conseguimos perder no Futebol, nas Olimpíadas, nos grandes torneios, competições... Perdemos nossos bens... E vamos perdendo tudo, devagarzinho.

Perdemos a noção do lícito e do ilícito, do pode não pode, do bem e do mal. Perdemos o rumo, a direção. Perdemos a paciência! Perdemos apostas, eleições, perdemos no jogo, perdemos o ano, perdemos a auto-estima, perdemos a vida.

O importante é que nesse processo de perda, tão cruel, vamos adquirindo sabedoria. A contrariedade do perder cotidiano nos educa e aprimora.

A perda de objetos nos ensina que devemos ser mais atenciosos e zelosos com as coisas que nos pertencem.

A perda de compromissos nos alerta de que o agendamento do nosso cotidiano deve ser planejado com critério, cuidado e responsabilidade.

A perda de tempo nos mostra a importância da valorização dos minutos, segundos, com atividades que edifiquem nosso espírito.

O suicídio nos alerta da importância do autoconhecimento, da valorização do eu interior.

A perda de qualquer dos sentidos nos mostra a importância individualizada de cada um deles.

Quando vemos a necessidade e os problemas batendo à nossa porta, enxergamos o valor do método, disciplina, trabalho, economia.

Quando estamos num leito de hospital damos valor aos bons hábitos de vida, higiene, alimentação.

Quando perdemos algum de nossos membros, aprendemos a importância do andar, do ato de dirigir, do escrever, do pintar, do trabalhar, do afagar, do tocar um instrumento. Aprendemos a importância da independência e manifestação da criatividade.

As oportunidades que nos fogem das mãos nos mostra a constante necessidade do aprimoramento intelectual.

Entre perdas e danos, ganhos e perdas, a vida flui inexorável.

Perder é preciso... Sempre. O processo de perda inaugura novas esperanças, sonhos e planos, novos amigos, novos rumos e caminhos.

Discutir a perda é um exercício dialético.

Devemos perder sempre, sem medo, de todas as formas, amiúde, para podermos ganhar experiência e sabedoria.

A perda, a grande mestra, nos liberta. Melhora-nos a cada dia. Ela nos machuca.

Como dói perder, mas em compensação quanto aprendizado!

 
 
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