PEDRO MARITACA EM: SAPATO APERTADO NO PÉ DO OUTRO É CHINELO
Alberto Carmo
 
 
Levava Pedro Maritaca sua pacata vida campesina, ao som de Tonico e Tinoco no radinho de pilha, e fartas pitadas nos cigarros que preparava com palha de milho seca e fumo de corda.

Pedro Maritaca era do tipo rude, pele esfolada, vermelha, barba de afiar faca, sola do pé de amassar fundo de garrafa como se fosse floco de algodão. Matava marimbondo amassando entre o indicador e o polegar, feito um piolho, depois dava um peteleco no finado e continuava roçando.

Lá pelas nove e meia voltava à palhoça, e se deliciava com os quitutes da patroa - arroz e feijão, temperados na banha de porco, farinha de milho, algum guisado saboroso, fosse de carne do açougue da cidade, quando tivesse uns contos de réis, ou de algum jacu, preá, ou mesmo tatu, quando dava sorte na caçada. Galinha só comia quando a preguiçosa deixasse de botar.

O desjejum era antes do alvorecer. Ao nascer do sol já estava na lida. Descanso só depois das três da tarde, quando o suor não dava mais trégua.

Aí Pedro Maritaca tirava uma pestana na rede, depois trocava de roupa, descascava uma mexerica, pendurava o chapéu de palha no cabide atrás da porta, e sentava no degrau da cozinha.

Nessas horas ficava olhando o calipal ao longe. Ouvia o canto grave da fogo-apagou, o pio profundo da juriti, o sanhaço ciscando no pé de uvaia, o joão-bobo equilibrado no varal do terreiro, a saíra disputando a água adocicada do bebedouro com o beija-flor.

Lá pelas seis e pouco chegava o Salvador Viana, amigo de infância, que morava logo depois da curva da estrada, onde se avistava um velho jacarandá. Era hora de prosear, de tomar uma das brava, e pitar na varanda.

Às vezes Viana contava um causo, que a criançada adorava ouvir. Noutras Pedro Maritaca cantava umas modas de viola. A conversa se estendia até a grilada começar a cantoria. Viana era viúvo, padrinho da Lininha, filha mais velha de Pedro, e jantava com a família todos os dias. Era convidado, mas retribuía a comida caseira com o que colhesse de melhor no sítio onde morava.

Nesse dia, Viana deixou o causo de lado e disparou:

- Cumpadre, perciso de um favor de vosmecê com presteza!

- Pois diga.

- Eu tenho que ir num casório de armofadinha, e não quero enfrentá sozinho essa empreitada.

- Mas, ara!

- Pois é, cumpadre. A fia do patrão vai casá, e ele me convidô pra festança. É sábado, despois da igreja.

- Mas, cumpadre, ocê sabe que eu não gosto dessa gente. Parece conversa ensebada, de fala dificir. Deus me livre!

- Ocê vai comigo nem que eu te carregue pelos cangote!

- Tá bão. Mas nóis vorta logo, ocê jura?

- Pela arma da minha finada patroa, que Deus a tenha.

Sexta-feira, quando Pedro Maritaca chegou em casa, viu a camisa branca secando no varal, feito um espantalho de braços abertos.

- Mas, ara. Qué isso, muié?

- Se ocê pensa que vai no casório com essa camisa véia, tá muito enganado. Vai ficá parecendo um caipira.

- Mas eu sô caipira, ara!

- Vai de camisa branca e de terno.

- Mas, muié, faz mais de dez ano que eu não ponho o terno. Deve de tá todo comido de cupim.

- Tá não. Deixei no sor e tá tinindo de novo.

- Tá bão, tá bão!

Fim de tarde do sábado, Pedro Maritaca toma um banho, e veste o bendito terno. Já estava calçando a velha botina, quando a patroa reclamou:

- Ara, ondé que ocê vai com essas botina toda suja?

- Ué, no casório!

- Pois trate de carçá os sapato preto.

- Mas num me serve mais, muié. Eu comprei pro batizado da Xandinha. Já faz dezessete ano!

- De botina ocê não sai daqui. Nem que eu me amarre na tranca da porta.

- Ai, meu São Benedito, me acuda!

Pouco depois:

- Mas isso num entra no meu pé nem com sebo de boi!

- Pára de recramá e carça logo.

Por fim, depois de um sacrifício só comparável a um vegetariano comendo picanha sem aparar a gordura, Pedro calçou-se.

Bem, a cada pisada que dava, saía até lágrima do olho... e fumaça das narinas. Pedro parecia andar sobre ovos.

- Tome jeito, home. Anda direito.

- Ocê num devia de me obrigá a carçá essa coisa de novo.

- Oia lá, o cumpadre chegou. Vão com Deus. Boa festança. E ocê nem se atreva a oiá pr'aquelas sirigaita assanhada da cidade, que senão eu pego o facão e...

- Chega, muié. E ocê acha que com os pé desse jeito eu vô oiá as perna da muierada?

- Tá pronto, cumpadre?

- Tô pior que capivara em arapuca de codorna, cumpadre.

- Vamo embora, senão nóis chega atrasado.

O galope a cavalo foi um alívio, mas quando apeou em frente da igreja a coisa recomeçou.

Durante o casamento, sentado no banco da última fileira, até que agüentou o martírio. Só não tirou os sapatos porque não ia conseguir pôr de volta.

A festa era no salão ao lado da igreja. A música corria solta e animada. Só que Pedro Maritaca não entendia uma palavra do que os músicos cantavam.

- Mas que diacho de música é essa, cumpadre?

- É ingrêis, coisa da moda.

Duas horas depois, Pedro Maritaca já suava frio, nem se mexia. Parecia instalação de artista gay em exposição do Masp.

- Vamo embora, cumpadre.

- Peraí, o patrão vem vindo.

O pai da noiva aproximou-se dos dois, contente em ver o empregado no casamento da filha.

- Vianinha, você veio. Que prazer que me dá!

- Patrão, esse aqui é meu cumpadre.

- Muito prazer, seo...

- Pedro Maritaca, um servo ao seu dispor.

- E então Pedro, não vai dançar um pouco? Olha que está cheio de moça bonita.

- Não carece, doutor. Nóis já ia indo embora, né Viana?

Um grupo de alegres convidados, já um tanto alterados pela bebida, e que observara a aflição do pobre Pedro, começou a fazer piadinhas ao lado:

- Olha o matuto, parece uma bailarina. Vai ver que nem tem sapato e pediu emprestado pra alguém. Pobre coitado! dizia um.

- E deve ser uns dois números a menos! disse outro, rindo.

- Gente, vocês parecem que gostam de caipira. Não têm nada melhor pra fazer do que ficar olhando a ralé? completou outro.

Pedro Maritaca, que tinha ouvidos acostumados ao silêncio povoado das noites na mata, tinha ouvido tudo.

- Com licença, madame. Tá falando mar do meu sapato?

- O senhor parece estar passando um mau bocado. Não prefere ficar descalço? Disse uma madona com cabelo engomado.

- Parece que o senhor comprou o número errado! sorriu ironicamente um rapaz com uma espécie de alfinete na orelha e cabelo mal cortado, que Pedro caparia como um cachaço, se fosse seu filho.

Viana, que logo percebeu a fúria indignada do amigo diante da gente envenenada, foi logo apartando:

- Cumpadre, num carece de brigar. Ademais, é festa do meu patrão.

- Pode deixá, cumpadre. Eu vou ter fineza.

E se dirigindo à matrona:

- A madame num sabe, mas é que eu achei uma esmerarda vindo pra cá, e pra mó de ninguém me roubá aqui, eu guardei no sapato.

A gargalhada foi geral, inclusive a de Pedro.

Partiram como vieram, sozinhos, dois amigos a cavalo na estrada.

Intrigado, Viana perguntou:

- Cumpadre, ocê achô mesmo uma esmerarda?

Pedro, com ar solene, num raciocínio isento de maldade, distante da ironia das gentes da cidade, e na sua simplicidade banguela, respondeu com orgulho de sabiá:

- É pedra farsa, cumpadre.

E seguiram a galope...

 
 
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