Tudo parecia
especialmente difícil naquela manhã. Sair da cama foi um Deus nos acuda.
Ela, a cama, parecia estar mais aconchegante do que o normal. Depois de
um trabalho mental de mais ou menos duas horas decidi que seria melhor
sair da cama imediatamente. Demorei mais uns 15 minutos e então criei
coragem parar trocar o meu ninho seguro por um banho levanta defunto.
Bela troca! O banho parece até que foi encomendado. O simples ritual do
toucador se transformou numa cena de dar inveja ao filme Psicose de Hitchcock
. A Bel, minha vizinha, quase estourou a campainha para saber se eu estava
bem. Tudo por causa da gritaria.
Depois de molhar todo o apartamento para atender a porta, tive ainda de
explicar o motivo do meu surto para a vizinhança curiosa. Preocupada,
a Bel me trouxe um floral de Bach para recuperar os nervos. Ela é gente
boa, mas levemente estressada. Ela jura que o meu chilique nervoso tem
relação direta e proporcional a minha fase ovulatória. Desfeita a confusão
rumei para a cozinha com objetivo de tomar o café da manhã.Sem nada convidativo
na geladeira para um desjejum resolvi concentrar minha energia na figuração
visual.
Minha ansiedade chegou na margem de 100% quando percebi que não achava
nada no armário que ficasse bem em mim. Hora eu parecia gorda no meu terninho
básico. Hora parecia sexy demais para uma manhã de quarta-feira. O momento
mais apoteótico foi quando vesti a camisa de cetim amarela. Estava reluzente.
Tudo bem. Estava na verdade Fashion demais para o evento. Era uma simples
consulta a um especialista. E aí eu pensei cá com meus neurônios e disse
pra mim mesma: nada de pânico, nada de pânico, nada de pânico!
É claro que para mim não era uma simples consulta. Eu demorei seis meses
para aceitar a sugestão do Roberto de que precisava de um especialista.
Depois demorei mais seis meses para procurar um. Agora que marquei a consulta
tinha vontade de desaparecer. Toda arrumada, eu desci até a garagem e
peguei o carro. Enquanto saía do prédio fiz mentalmente o melhor caminho
para se chegar até lá.
Quando avistei o prédio me deu taquicardia. O coração parecia que ia sair
pela boca. Quando entrei no saguão, peguei o elevador e apertei 10° andar.
Estava tudo bem fora o suor das mãos e a perna bamba. Cheguei no consultório
quinze minutos antes da consulta. Um trunfo para quem vive atrasado pra
tudo.Enquanto esperava a minha vez resolvi tentar relaxar prestando atenção
nas pessoas que dividiam aquela sala de espera. Para despistar minha investigação
peguei uma revista e comecei a folhar. Dava pra cortar o silêncio com
uma faca de cozinha. Entre uma folha e outra eu olhava quem entrava, quem
saia e o que estavam fazendo. Eles pareciam normais. Sabe, do tipo gente
como a gente. Eles vestiam roupa do dia-a-dia como jeans, tênis, camiseta,
enfim roupas confortável e nada especial. O cara que estava do meu lado
direito era meio esquisito. Tinha um tique com os olhos e não conseguia
esconder o nervosismo. Balançava as mãos e depois as esfregava na perna.
Pelo menos eu achei alguém mais nervoso do que eu. Foi então que a porta
se abriu e um homem de uns 40 e poucos saiu. Ele chamou pelo meu nome.
Sem jeito me levantei e fui até ele. Ele me convidou para entrar. A sala
tinha uma decoração simples, mas agradável. No canto esquerdo um pequeno
sofá me esperava. Ele disse: sente-se. Ele esperou que eu me sentasse
para depois se acomodar. E então, ele finalmente perguntou:
- O que te trouxe até aqui?
- Foi sugestão do meu marido, sabe. Eu relutei para vir, mas agora que
vim acho que preciso conversar.
- E você quer falar sobre o que?
- Ah, sobre tudo. Sabe, o meu marido tentou me ajudar, mas ele acha que
eu preciso de um especialista. Você sabe, alguém que tenha estudado para
isto.
- Sei. Mas, porque você sentiu que precisava vir até aqui?
- Eu não me sinto bem. Na verdade, eu não sei o que sinto. O tempo foi
passando, as coisas foram acontecendo e os sonhos foram ficando engavetados.Sempre
tinha alguma coisa mais importante para fazer. Cheguei num ponto de não
conseguir mais sonhar. E agora não lembro mais como se faz. Será que isto
tem jeito?
- Só vai depender de você.
- Estou me sentindo péssima. Acho que eu sou sua pior paciente.
- Não seja tão pretensiosa, eu é que sou o psicanalista.
- Tá, tudo bem. Na verdade eu me sinto invisível. Ninguém nota se eu estou
ou se eu não estou. Eu posso me produzir e ninguém nota. Nem o Roberto.
Minha identidade se desfez nestes anos e eu gostaria de resgatá-la. Eu
não sei se é possível. Será que é ?
- Claro que é.
- Já não sei de mais nada. Não me sinto capaz. Como eu te disse me sinto
invisível. Sem visibilidade e sem existência.
- Gostaria de te ver todas as quartas-feiras, neste mesmo horário para
podermos conversar mais. Esta é a minha sugestão. Você quer fazer este
processo?
- Não sei. Tenho outra escolha?
- Acho que não.
- Então, nos vemos na próxima quarta-feira. Sua sessão acabou.
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