TRIVIAL INVARIÁVEL
Luís Valise
 
 

“... e faça um favor pra nós dois: - Me esqueça !”.

A folha de papel estava entre seus dedos há bem dez minutos. Seus olhos patinavam pela frase sem decifrar o conteúdo da mensagem. O que era aquilo? Um pedido? Uma ordem? Ainda que fosse uma sugestão, era vã. Afinal, quem decidiria era ele. Assim como quando a conquistou foi ele quem decidiu, também a hora de terminar seria decisão dele. Ora, pois!

A letra do bilhete era firme como a de um idiota suicida. Não duvidava, bem ao contrário de quando iniciaram: - Mas como, e a sua mulher? E os três filhos? - Por você eu largo tudo! Prometeu e não voltou atrás, se bem que ainda espera a hora certa de falar com a Geisa. Precisa esperar a hora certa para que a separação ocorra sem traumas, tem que pensar nas crianças. Amor com responsabilidade. Era isso que ela não entendia. E, depois, o que são oito anos? Podemos muito bem nos amarmos mais oito, mais vinte, e quando chegue a hora certa eu falo com a Geisa e pronto. Não digo que vá demorar tudo isso. Mas se existe amor, o tempo não importa. Duas vezes por semana nos encontramos, disso não abro mão: são três horas inteiras de puro desvario, eu e ela e mais ninguém. Por que ela insiste querer mais? Quem, por Deus, algum dia irá entender as mulheres?

Sua única dúvida era o que fazer com o bilhete. Dobrava, punha no bolso pra depois devolve-lo dizendo: - Não aceito. Nunca. Quando eu falar com a Geisa você vai me dar graças a Deus pelo bom senso. Ou então o rasgava em mil pedacinhos e jogava sobre sua cabeça como se fossem confetes, num carnaval improvisado e cheio de luxúria; ele sabia bem do que ela gostava.

Enquanto olhava o bilhete veio a idéia de telefonar pra ela. Isso. E quando ela atendesse ele soltaria a voz: - “De quem eu gosto, nem às paredes confesso...” Ela tem um fraco por esse fado. Imaginava seu grande sorriso doce do outro lado da linha, e sua voz mansa: - Esquece, Alaor. Besteira minha. Rasga o bilhete. Taca fogo. Me taca fogo.

- Alô! - “De quem eu gosto, nem às paredes confesso...”, sua voz grossa ainda mais grossa que de costume encheu a linha, e depois fez silêncio, esperando o pedido de perdão. – Alô! Que merda é essa? A voz era outra. Não perdeu a calma: - A Mirtes, por favor. A resposta mexeu com sua labirintite: - A Mirtes não mora mais aqui! Como não m...Click! Respirou fundo, esperou a tonteira passar e tornou a ligar: - Ela mudou e me proibiu dar o novo endereço pra quem quer que fosse. Principalmente prum tal de Alaor, quem ela disse ser um grande filho-da-puta. Quem disse foi ela.

O bilhete continuava entre seus dedos. “... e faça um favor pra nós dois – Me esqueça!”. O que ela queria dizer com isso? Um susto. Ela queria me dar um susto. Antes assim... Já imaginou se ela tivesse ido mesmo falar com a Geisa, rodar a baiana, como ameaçou tantas vezes? Essa Mirtes... Essas coisas que me fazem gostar tanto dela. Quando nos encontrarmos de novo vou lhe dar um beijo na boca que ela nunca mais vai esquecer. Que saudade dela! Engraçado, nesses oito anos eu nunca senti tanto sua falta. Sempre que eu queria ela estava ali, pronta, louca. Agora deu pra brincar com os meus nervos... Se eu pensar nela bem forte ela me telefona. Deixa eu me concentrar.

Após momentos que pareceram horas, Alaor na mesma posição, concentrado, os olhos cerrados com força, o suor escorrendo pela testa, o bilhete entre os dedos, o telefone tocou. Ele esperou que tocasse três vezes pra bichinha sentir que quem mandava ali era ele. Levantou o fone e antes que dissesse alô a Geisa foi logo dando esporro: - Ô Alaor, vê se te manca! Outra vez? Rasga esse bilhete e vem já pra casa! Ah!, passa na padaria e traz pão e leite.

 
 
fale com o autor