BOA NOITE, MARIA!
J P Camargo
 
 
Acidentes de carro sempre aconteceram, pessoas sempre morreram por sua causa e não raro são provocados por indivíduos alcoolizados. Que novidade pode haver num caso como esse? Muitos diriam nenhuma, outros se mostrariam completamente indiferentes ao fato... mas o homem que estava prestes a enterrar sua esposa não via nada de irrelevante nisso tudo. Sem qualquer originalidade, dois automóveis haviam colidido, sendo que em um deles havia um bêbado ao volante e no outro um casal. O sujeito embriagado tinha morrido na hora, mas a mulher no outro carro ainda teve tempo de chegar ao hospital, onde acabou falecendo. Seu marido, que estava dirigindo, sobreviveu incólume. Tudo muito banal, menos para o sobrevivente.

Maria estava morta e ele não podia fazer coisa alguma. Sua companheira, ou mais do que isso, sua cúmplice de vários anos e diversas alegrias e infelicidades encontrava-se num caixão, entre flores, velas e murmúrios. Ele derramava uma lágrima a cada recordação dos momentos compartilhados pelos dois, por cada instante de alegria que jamais voltaria. Tudo se transformara em memória com o acidente e a morte. A mulher fiel, que jamais poderia tê-lo traído, já não passava de um corpo sem vida, tão inerte quanto o esquife que o acolhia. Dizem que num funeral não se chora por causa de quem se foi, mas por quem fica, isto é, cada um chora por si mesmo ao ver o destino do qual ninguém fugiu até hoje. Não era esse o caso daquele homem, evidentemente.

Quando o caixão foi tampado, caiu numa crise ainda pior, sufocando-se em meio aos próprios soluços. Seria sua a culpa, ainda mais por ter sobrevivido? Ou teria sido do maldito bêbado, igualmente morto? Entretanto, já não tinha mais forças para buscar um culpado ou mesmo prantear. A caminho do sepultamento, passou a sentir uma crescente resignação. Percebeu que Maria estava dormindo e não tinha mais a menor necessidade de acordar, enquanto que ele continuaria despertando todos os dias... apenas para ver que ela não estava mais ao seu lado. Enfim, quando o caixão foi baixado cova adentro, o homem teve a definitiva iluminação: viu que a esposa o tinha traído no último momento. Afinal, ela se foi e o deixou para trás... vivo. Uma traidora!

 
 
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