PAIXÃO COM FILTRO
Luís Valise
 
 

Crunch! Os dentes afiados de Adão cavaram uma meia-lua esbranquiçada na maçã vermelha. Quis comentar sobre seu sabor com a cobra, mas esta já desaparecera. Aproximou a fruta ao nariz e sentiu o perfume adocicado. Uma voz morna se fez ouvir por detrás de sua cabeça: - Deixa eu provar também? Adão deixou. Enquanto Eva decifrava o mistério da maçã, Adão notou pela primeira vez o arredondado do seio de Eva, e perguntou-se que gosto teria aquela ponta de pitanga. Uma gota do suco da maçã escorria pelo canto da boca de Eva quando esta notou o olhar de Adão, e deu-lhe de provar suas próprias frutas. Na manhã seguinte Adão acordou satisfeito. Esticou-se preguiçosamente, bocejou prolongadamente, e quando tentou levantar-se ouviu Eva perguntar, sem mesmo abrir os olhos: - Aonde o Sr. pensa que vai? Adão descobria ali, na hora, o preço dos pêssegos arrebitados, das coxas de alabastro, da acolchoada pétala rósea. E chorou, pela primeira vez, baixinho...

Tudo começou a sacudir, a tremer, então Osório acordou. Era sua mulher, Ivonne (assim, com dois enes, paixão do pai por uma tal Yvonne de Carlo, boa bisca...) que o sacudia – Acorda, Osório, tá chorando por quê? Osório sentiu o travesseiro úmido, passou as mãos sobre os olhos molhados, mas sua cabeça era uma grande mancha branca, sem lembranças nem sentimentos. – Quem? Chorando, eu? Você tá maluca, deve ser conjuntivite! Chorar, eu, com esta idade, por qual motivo? Como sempre atrasado, foi direto pro chuveiro. A desilusão atávica foi pelo ralo, junto com a água espumante.

O café foi apressado. Não podia perder o ônibus das sete e quarenta pra não chegar atrasado ao trabalho. Já pensou ter que se explicar de novo pro Arruda? O Arruda era mais novo de casa e só era chefe por puxa-saquismo. Puxa-saco que só ele! Não era má pessoa, mas não deixava passar nada. Um puta dum Caxias. Sempre cobrando relatórios, de mesa em mesa vendo quem lia jornal no expediente (pior ainda se fosse futebol!). E a firma agora dera pra posar de moderninha: proibido fumar dentro do escritório. Tudo pra imitar os gringos de merda! Só o salário não era imitado. Na Matriz os caras ganhavam muito mais pelo mesmo serviço. E o Osório, pela função que exercia, conhecia todas as malandragens que a firma fazia. Um puta dum caixa-dois! Foi fumar lá fora. Logo veio o Arruda: - Osório, já é o segundo, porra! Deixa pra fumar em casa! Eu preciso do Relatório antes do almoço!

O almoço era assim: uma mesa cheia de homens falando de trabalho. Às vezes mudava o assunto e então falavam de dívidas, preços das escolas dos filhos, e, bem baixinho, falavam mal do Arruda. Depois era só repetir o trabalho da manhã com números diferentes, que era o mesmo trabalho de todos os dias com números parecidos. Teve uma vez, não sabe onde estava com a cabeça, começou a escrever um verso. Era difícil, chegou a suar pra encontrar a rima, mas foi interrompido pelo Arruda. Mal teve tempo de jogar o papel na gaveta. Só o coração é que continuou batendo forte, mas isso o Arruda não podia ver...

Na volta pra casa, descia do ônibus duas paradas antes e entrava no Bar do Ferreira. Ferreira era um baiano que falava e ria muito, sempre numa boa, ou então fingia muito bem. Acho que era por isso que o bar vivia sempre cheio. De volta do trabalho todos paravam lá pra levar uma gozada, dar uma gozada em alguém, tomar umas e outras, falar de umas e outras com os mais considerados, jogar conversa fora, mentir e fingir que acreditava que fingia. Uma dose antes da ideal voltava pra casa. Se tomasse a ideal não sabe a que horas chegaria. Ivonne sabia que não adiantava mas falava mesmo assim. – Isso são horas?!

Os filhos já tinham idade pra chegar mais tarde. Depois da janta jiboiava no sofá olhando pra televisão. De vez em quando Ivonne estrilava: - Osório, olha essa baba, Osório! Saía do cochilo assustado, limpando a boca com as costas da mão. Olhava sem jeito pra Ivonne e mandava um beijo brincalhão.

Mais tarde ia escovar os dentes. Depois deitava pensando nos filhos que sempre chegavam muito tarde (preciso botar ordem nisso!). Fechava os olhos para dormir e deixava que lhe escapassem uma lágrima ou duas, tranqüilas. Dessas a Ivonne nem suspeitava.

 
 
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