ANGÉLICA
Míriam Salles
 
 

E agora Maria?
Onde o sonho?
Onde a fantasia?
E agora Maria?
A vida se impôe,
onde a alegria?

Angélica olhou em volta satisfeita. Terminara todo o trabalho da casa. Tudo brilhava de tão limpo. O chão refletia sua imagem quase como um espelho. Essa hora era a hora que mais gostava, a casa pronta, arrumada, impecável - por mais alguns minutos.

Olhou o delicado relógio dourado no pulso delgado. Meu Deus! As crianças!

Tirou o avental, correu para o espelho atrás da porta da cozinha, ajeitou os cabelos cacheados ao mesmo tempo em que relanceava os olhos pelo cômodo, tentando localizar a bolsa de couro vermelho. Adorava aquela bolsa. Com ela sentia-se mais madame que nunca. Verificou se as chaves estavam lá dentro e saiu correndo porta afora, tomando o cuidado de puxá-la atrás de si com a força necessária para não fazer barulho e trancar.

Num instante descia de dois em dois os degraus da escada escura. Era mais rápido que o elevador e seus pés conheciam cada degrau daquela escada. Seus pés, suas pernas e algumas outras partes de seu corpo.

Morava alí desde que nascera. Subira aquelas escadas dezenas de anos, primeiro no colo de alguém. Depois pelas mãos de sua mãe, passo a passo, aprendendo cada saliência. Havia, por exemplo, aquele canto onde o degrau se quebrara e, se pisasse ali com desatenção, era tombo na certa. Quando criança sempre ganhava na corrida porque, sabendo do fato, escolhia o lado melhor.

Abriu a porta da frente e parou por um instante, como que impedida pelo ar quente do exterior. Foi nesse instante que viu. Meu Deus, estou de havaianas!

Olhou novamente o relógio. Se subisse, não chegaria a tempo e gostava de estar no portão antes que a calçada se enchesse de mães ansiosas. Mas não podia ir de havaianas. Suspirou e, voltando-se, entrou novamente no ar frio do interior do prédio. Correu escada acima vasculhando a bolsa à procura das chaves. Por que tudo ficava tão mais difícil quando se tinha pressa? Entrou, colocou os sapatos, largando as sandálias jogadas de qualquer jeito e saiu correndo.

A escola era perto, apenas duas quadras seguindo pela avenida à beira-mar. Poderia fazer o percurso de olhos fechados, afinal, era a mesma escola onde estudara desde pequena. A mesma escola onde sua mãe também estudara. Era uma boa escola. Pouco se modernizara nos últimos anos, mas contava com professores dedicados. Alguns que ainda se lembravam de quando ela lá estudara e sempre repetiam as mesmas observações: "Olá, Angélica. Sua filha é um anjinho, como a mãe". Ou então: "Como vai Angélica? Dei aula ontem para seu filhinho, nem parece que é seu, de tão capeta".

Devia ser sina, maldição do nome. Sempre havia sido boazinha, certinha, educadinha, uma anjinha! Mas Deus sabia quanto queria às vezes mudar tudo aquilo. Olhar as pessoas nos olhos e falar: "Olha, eu não sou boazinha assim. Por dentro sou ruim, muito ruim. Por dentro tenho anseios, desejos inconfessáveis".

Não falava, mas lembrava daquelas tardes quando se escondia com o amigo da escola na escada do prédio, fingindo que estudava. No dia em que voltou com uma manchinha de sangue, chegou chorando: - Mãe, cai no degrau quebrado. A mãe, Angélica também, consolou e mandou para o banho.

Morrera cedo, a mãe. Mal casara a menina com o moço bom da padaria da esquina, moço com futuro garantido, tivera um ataque cardíaco fulminante. O moço, bom marido que era, depois do enterro da mãe, sugeriu que morassem no apartamento que era dela, afinal, era a única herdeira e não tinha sentido ficarem pagando aluguel. O que ele não sabia era que Angélica se casara para sair dali, mudar de vida e quem sabe, de sina.

Ela gostava do moço, mas não era o mesmo que aparecia em seus sonhos. Ah, o moço dos sonhos...

Era um dos meninos da escola que entrara na oitava série. Não era do bairro, pelo menos ela nunca o havia visto antes. Alto, moreno, olhos pretos, cabelos cacheados que as vezes esquecia de fixar com gel. Nesses dias Angélica mal prestava atenção às aulas, entretida que ficava com os cachos que teimavam em cair sobre os olhos. O menino mal a via, pois era um daqueles estudiosos, o melhor da classe. Depois ficou sabendo que estava ali de castigo por ter tirado uma nota mais baixa na escola particular onde sempre estudara.

Um dia se encontraram por acaso em frente ao prédio dela. Ela, ruborizada, mal olhava para ele. Ele, garanhão que era, já havia reparado na menina linda e tímida que sempre o vigiava de canto de olho. Foi chegando e conversando e em pouco tempo estavam dentro do prédio, nas escadas. Depois desse dia, o menino começou a aparecer de vez em quando e Angélica o esperava com ansiedade. Fazia planos para o casamento, os filhos que teriam, a casa que comprariam. Mas quando falou disso com o menino, ele riu e respondeu "Deixa disso, menina, a gente só está aqui para se divertir, deixa de coisa séria". Assim o tempo passou, Angélica se formou, as visitas do menino rarearam e ela começou a notar o interesse do moço da padaria. Casaram-se, ela de véu e grinalda brancos, como manda a tradição. Ninguem nunca soube que sua langerie era cor de creme, com uma rosa vermelha bordada.

Angélica relembrava tudo isso enquanto corria para a escola. Chegou esbaforida ao portão já cheio de mães e suspirou novamente. Olhou para dentro, onde viu chegar correndo a filhinha mais velha, com os cachos negros balançando de um lado para o outro e suspirou novamente. Foi então que ouviu atrás de si uma voz bem conhecida que lhe provocava arrepios na espinha:

- Bom dia Maria Angélica!

E agora Maria?
Vai viver a vida
com hipocrisia.

 
 
fale com a autora