DEDOS CONTADOS
Rosi Luna
 
 
Minha visão de mundo era um globo terrestre, algo redondo que girava e, nesse giramundo, imaginava conhecer todos os lugares onde habitasse o ser humano, e nisso estariam incluídos os dignos e os indignos, ou melhor, os marginalizados. A vida pra mim era muito retângular num apartamento, com os dedos contados, tudo perfeitamente arrumado e estacionado como os móveis da sala.

Penso que é na infância que se começa a pegar gosto pela vida, e quando me dei por gente, melhor dizendo, quando virei uma menina romântica e poética, me lembrei de um nome que veio selar um pacto por toda minha existência. Sim, a poesia entrou na minha vida pelo endereço da minha infância, um nome que arrastava correntes e sofrimento escravo. Chamava-se Rua Castro Alves, a rua que morei. O nome desse poeta e de tantos outros foram me dando a amplidão de um mundo irreal e por vezes tão próximo que seria como se pudesse sentir o sangue escorrendo, o sofrimento convivendo com a poesia. Duas sensações muito próximas, o amor e a dor.

Saberia que em cada verso estaria ali expondo uma alma a sofreguidão e a solidão do pensamento poético. Comecei a amar palavras e fui gostando de conhecer pessoas que pudessem me dizer algo, que me fizessem praticar o exercício humanitário da cidadania, que me empurrassem para jogar fora os preconceitos que carregam os humanóides. E de alguma forma querer mudar os que viraram andróides, artificiais e frios. Comecei a ver um mundo sem divisões territoriais, o momento seria o próximo e começei a brincar com vida, juntando pensamentos e agrupando como se fossem peças de encaixe de um quebra-cabeça.

A poesia seria a magia de tocar estrelas, pisar na lua e criar castelos. Falar de amor na prosa ou na poesia sempre seria mais fácil do que expor ao mundo a ferida e a carência da fragilidade humana. Como falar de dor?

Talvez hoje, olhando minha mão com todos os dedos, possa lembrar daquele homem, sei que era quase meio-dia, sol quente, temperatura pra avariar termômetros. Pouco se sabe da arquitetura da pobreza, mas ela existe, feita de taipa e de tijolos sem acabamento. Esse tipo de casa que bati eu chamava de casa de porta na rua. Era uma porta dividida no meio, botei meu rosto quase pra dentro e o chamei pelo nome, constava no questionário o nome do morador do domicílio. Essa casa fazia parte da amostra de uma pesquisa de um grande instituto de estatísticas brasileiras. Não lembro o nome dele, só do rosto e dos poucos dedos. Me convidou pra entrar com satisfação e me acomodei na única mobília existente, uma cadeira de balanço.

Começei a balançar, tava um movimento gostoso, foi quando meus olhos alcançaram a porta do quarto e vi o homem calçando meias, apurei a visão e vi, dedo sim, dedo não nos pés. Ele apareceu na sala e seu sorriso era pra todos os dentistas botarem defeito, tinha dente sim, dente não. Ele sentou do meu lado, em um banco que apanhou na cozinha. Meu olhar circulava incrédulo, as mãos davam a impressão de secas e comidas, tudo partido nas falanges, nem mindinho ele tinha.

Devo salientar que sabia, que estava em um bairro vizinho a um hospital de hanseníase, acho mais civilizado falar esse nome. Leproso me lembra asqueroso, nome forte, não gosto de usar. Tinha uma claúsula da minha pesquisa em que estava escrito que pessoas com doenças infecto-contagiosas não fariam parte da amostra.

E foi nesse momento que descobri que meu lado humano iria se sobrepor ao lado profissional, não poderia dizer para aquele senhor que me recebeu com aquele sorriso, que classifiquei como puro, que ele poderia não fazer parte da amostra.

Ele foi logo confidenciando que gostou muito da minha visita, era muito sozinho. Fiz a pesquisa normalmente, no meu íntimo pulsava um medo do contágio, e ao mesmo tempo uma força que me segurava ali. Quando terminei as perguntas, tinha um item que dizia "assinatura do informante". Pensei, não vou pedir pra ele assinar. Me levantei e fiz menção de sair, ele prestativamente pegou minha caneta e disse "você ia esquecendo de pedir pra eu assinar, vi o x no questionário". Eu e minhas manias de facilitar as coisas, tinha colocado x em todos os questionários antecipadamente, bem do lado do lugar da assinatura. Ainda me ocorreu uma cena de filme de terror, uma espécie de pânico 100 e se um dedo ficar grudado na caneta, grito ou solto no chão, e saio correndo.

A essa altura me sentia temerosa, não sei porque ainda deu tempo de pensar em poesia de sofrimento, em contágio, em como a vida é frágil. Esse homem que o mundo isolava com os olhos me disse algumas palavras tão profundas como suas feridas. Ele se despediu e disse. - Bom dia, Maria! Bom trabalho. Nossa, nem sei que horas são, acho que já é boa tarde. E não sei porque, mas seu nome deve ser Maria. E eu disse, como advinhou? Rosa Maria.

Tem cara de Maria e é muito corajosa, avise isso ao seu chefe, e deixa te falar "minha doença é muito feia, mas tive alta do tratamento no hospital e no estágio que estou, não tem perigo de contágio". E ainda brincou "não vou te dar um aperto de mão, porque periga ficares com um dedo meu, minha mão não está lá essas coisas".

Guardei esse cumprimento de bom dia, para o resto de meus dias, do meu globo, do meu mundo. E tudo girando, os dedos escapando e o sol não pára de nascer todos os dias. E meus olhos aprenderam a ver além da beleza que o espelho reflete. E me senti uma heroína, senti que a vida rima e não enfrentei um exército, foi só um homem com os dedos contados.

 
 
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