CANÇÕES DE ANTES
Beto Muniz
 
 

“Ai, as pernas da Carolina, ai, ai, ai,
não são grossas, nem são finas”.
- Roberto Leal -

Não sou saudosista. Não pretendo relembrar antigas canções de roda, nem as músicas bregas que as rádios tocavam na década de oitenta. Se bem que é impossível versar sobre canções de ontem sem lembrar do Fuscão Preto, da Feiticeira, Menina Veneno e outras. Estas canções que evoco no título acima, são de lembranças envelhecidas, apesar de eu ainda ser moço - talvez esteja ficando velho e não saiba, enfim, a verdade é que depois dos trinta anos de idade a memória de infância ou é poética ou é antiga. Essa de hoje é um exorcismo.

Dona Anita era minha vizinha. O que fazia dona Anita ser uma vizinha especial eram seus cabelos loiros e seus olhos claros. Na região do Triângulo Mineiro da década de oitenta, as pessoas eram, na grande maioria, netos, bisnetos ou trinetos de escravos que herdaram dos antepassados a cor morena, os dentes fortes extremamente brancos e olhos de jabuticaba. No máximo um ou outro par de olhos cor de mel, mas no geral olhos negros como os dos ancestrais. Por isso causava estranhamento e curiosidade, na vila, a presença de alguém com olhos claros e cabelos quase brancos de tão loiros. Ainda mais sendo Dona Anita viúva e com uma filha que lhe era idêntica nas cores da pele, dos cabelos e dos olhos. Carolina.

Carolina tinha aproximadamente dois anos quando se mudou para a casa ao lado da minha. Eu tinha menos de sete, lembro que no ano em que nos tornamos vizinhos eu entrei para a escola. Logo de cara apelidamos a vizinha de "Russa". Depois corrigimos o engano e passamos chamá-la de "Alemoa". A filha era a Alemoazinha. Isso até quando aprofessora descobriu (todos os alunos da vila tinham uma só professora, dona Eunice) e corrigiu nosso segundo engano. "Não é alemoa e sim alemã, mas não quero que a tratem desse modo, chamem-na pelo nome, dona Anita". Como naquele tempo, e naquela vila, os alunos respeitavam a professora, a vizinha ganhou definitivamente o nome singelo de Dona Anita.

A primeira vez que a vizinha convidou meus irmãos e eu para comer bolo foi uma festa. Ela acendeu uma vela, cantou parabéns para a filha, que soprou a velinha, e nós batemos palmas.

Na semana seguinte novo convite, novo parabéns pra você e outra velinha assoprada pela Carolina. "A mulher é maluca", pensei. Mas o bolo era uma delícia e na terceira semana consecutiva lá fomos nós, meus irmãos e eu, cantar parabéns pra Carolina, que apagou mais uma velinha. Dessa vez me pareceu que as duas velas anteriores e essa última eram uma só, mas esse detalhe não era importante e relevei.

Na semana seguinte fiquei de sobreaviso, esperando convite para o bolo semanal, mas dona Anita nem apareceu no quintal. Lembro que não arredei pé do mourão a tarde toda. No início da noite desisti, desolado. Mas o intervalo foi de uma semana apenas, e na quinta feira à tarde lá veio o convite e lá fomos nós, bater palmas pra menina que fazia aniversário toda semana.

Eu e meus irmãos fazíamos qualquer coisa por um pedaço de bolo da dona Anita, só que os comentários já haviam ultrapassado a cerca de arame farpado, ido até a vila e voltado para a casa da vizinha. Não lembro se as fofoqueiras foram minhas irmãs ou eu mesmo, mas todos já sabiam que nossa vizinha era maluca e cantava parabéns toda semana para a filha. Doida ou não, aceitamos de imediato o convite seguinte, que veio acompanhado de uma promessa: teríamos refrigerante para acompanhar o bolo. Fomos, cantamos parabéns, nos empanturramos e ouvimos a explicação sorridente de dona Anita: "Tenho o hábito de fazer bolo nas quintas feiras e o pai da Carolina sempre cantava parabéns pra ela antes de comermos. Ela se acostumou e ainda é muito pequena para perder essa alegria. Já basta ter perdido o pai...!".

Foi a primeira vez que eu enxerguei uma órfã e, desse dia em diante, passei a cantar com cumplicidade os "parabéns pra você". Depois de um tempo já nem era tanto pelo bolo, mas pelo brilho naqueles olhinhos verdes cheios de "hora! é hora! é hora, é hora, é hora! ra-tim-bum..." e vazios de pai. Pelo que me lembro, essas canções semanais foram minha primeira boa ação. Mas como tudo tem seu tempo, o tempo de Carolina também se foi.

Carolina perdeu os "parabéns pra você" e ganhou uma paralisia infantil. Foi na perna. Uma delas parou de desenvolver e a outra continuou. A menina cresceu, foi pra escola e conheceu a crueldade dos meninos mais velhos. Eu inclusive. Não sei por que, mas esqueci da música que cantei para minha vizinha durante anos e passei a fazer coro com outros meninos, parodiando a música do cantor português que tinha cabelos loiros como os da Carolzinha. Todas as vezes que ela passava manquejando rumo a única escola da vila, a gente cantava: "Ai, as pernas da Carolina. Ai, ai, ai, uma é grossa, a outra é fina". Ela nunca protestou contra nossa crueldade... Talvez por ser verdade! Uma era grossa e a outra fina.

De tudo, das quintas-feiras, dos bolos, dos parabéns, a lembrança mais nítida em minha mente é o brilho triste que eu fingia não ver nos olhos da menina. Essas lembranças são meus demônios e para evocá-los basta ouvir as canções de antes. Elas são parecidas com as antigas canções de roda, são músicas bregas que as rádios tocavam na década de oitenta. São canções que todos conhecem e cantam sem imaginar que eu as ouço e purgo os pecados antigos... Se bem que naquele tempo eu ainda não tinha pecados. Nem demônios!

A redenção para minha alma é que guardei também o brilho feliz refletido naqueles olhos verdes todas as vezes que ela soprava a velinha derretida de inúmeros aniversários comemorados semanalmente.

 
 
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