FRACTAL VI
Sérgio Galli
 
 
No exato instante que estas palavras cobrem esta página em branco, ao completarem-se 15 segundos, uma criança estará morta por diarréia. Ao totalizar um minuto, serão quatro. Ao final de um ano, 2,2 milhões. Mas as pessoas estão preocupadas com a briga entre a globo e o sbt (em minúsculas mesmo).

Meu cérebro parte réptil, parte primata, parte Descartes, inquietava-se com essas ilações quando senão por acaso surgem em frente às minhas estuporadas retinas aqueles olhos verdes. Estava sentado no banco do ônibus no meu retorno ao meu doce lar doce lar. Coração e mente mergulhado na perplexidade diante dessa estúpida espécime que habita este insignificante planeta pertencente a uma entre bilhões de galáxias do infindo universo em expansão. Diante de mim, aqueles brilhantes e misteriosos olhos verdes.

O que pensavam aqueles lindos olhos verdes? Mas pensar para quê? O brilho deles não seria o suficiente? O rosto que continha aqueles olhos verdes emanava alguma boniteza o que causava um estranhamento naquele veículo que carregava uma carga de amargor, desalento, desassossego e solidão. A solidão das grandes cidades. O desassossego da cidade grande. O desalento da metrópole. O amargor da vida na megalópole. E aqueles olhos verdes eram perturbadores.

As páginas dos jornais cada vez mais me dão urticária. Principalmente quando entra em cena o FFHH. Aí tenho vontade de vomitar. Um pequeno meliante é preso por furtar oito reais. Um ex-prefeito paulistano, notório ladravaz, tem fortunas em contas nos chamados paraísos fiscais. Penalizada com a idade avançada do referido elemento, a juíza o absolve. De novo, surgem aqueles olhos verdes. Alento. Mas vem o desalento. Quatro filhinhos de papai, provavelmente funcionários de alguma repartição pública daquela ilha da fantasia, Brasília, numa inocente brincadeira juvenil fazem de um índio pataxó uma tocha humana. Pedem desculpas! Choram lágrimas de crocodilo. Só aqueles olhos verdes podem acalmar meu incomodado coração.

Anos e anos na luta democrática pelo fim da ditadura. Vitória. A democracia é um valor universal. Vejo que agora estamos sob uma outra ditadura: a do ibope; das estatísticas; dos gráficos; das planilhas; dos organogramas; dos índices; das pesquisas; das tabelas; dos números; da álgebra. Assim indignava-se meu cérebro meio Descartes, meio primata, meio réptil, enquanto permanecia sentado no coletivo que me levaria para minha casa. E surgiram aqueles olhos verdes cheios de luz e mistério, vazios de algarismos. Irradiavam uma certa alegria, raramente vistas nos olhos tristes dos transeuntes daquela avenida da cidade grande. Havia um sinal de vida naqueles lindos olhos verdes enquanto eu apertava a campainha para descer do ônibus. Cheguei em casa e não consegui esquecer aqueles insondáveis olhos verdes.

 
 
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