GOL DE PLACA
Larissa Meo
 
 
"Quando eu sou boa eu sou ótima.
Mas, quando eu sou má, ninguém me segura."
- Maria Clara, a mulher invisível
-

Sabe aquela coisa que eu falei sobre a evolução dos homens? Nada a ver com Darwin, o pai da teoria de que nós viemos dos macacos. Tudo começou, ou melhor, tudo empacou naquele capítulo da divina novela humana onde vovô Adão era o galã do Jardim das Delícias. Isso sem falar na história da cobra, né. Para vovó Eva, companheira e subordinada, só restava ser coadjuvante mesmo, já que ela nasceu da costela dele. Apesar de sinistra a historinha era essa e a ladainha se repetiu por um bom tempo, para não dizer séculos. E depois da inércia feminina surgem as feministas. Para as autoridades de plantão, todos homens, claro, elas não passavam de um bando de mal amadas. E por isso a única coisa que lhes restou foi atear fogo no próprio sutiã em praça pública. Intriga deles. Eu não me incomodo nem um pouco com isso. Ainda mais porque quem comprou o sutiã faz o que quiser com ele. O que me deixa irritada é o fato delas saírem por aí pregando que as mulheres são superiores aos homens. É claro que são. Mas é perigoso espalhar isto por aí. Pode estragar tudo.

Do sutiã incinerado pra cá as coisas mudaram um pouco. Pra ser mulher do novo milênio tem de ser muito macho. Afinal de contas que homem agüentaria não controlar o próprio corpo. Todo mês ele dói, incha e depois vaza. Menstruação todo mês é coisa pra macho. Já pra ser homem, daquele que faz sucesso com as mulheres, e provoca dor de cotovelo nos marmanjos, é preciso liberar a feminilidade e passar a entender de decoração, culinária e moda. Só fica um pouco esquisito quando eles pedem aquele vestido que você adora emprestado. A dúvida que fica no ar é: será que ele vai devolver?

Mas, voltando ao meu discurso nada feminista eu digo e repito: o mundo é das mulheres. E não preciso ir muito longe para comprovar isso. Basta dar uma espiada no meu microcosmo para ter certeza de que o Roberto é desafio para Freud. Roberto, o exemplar do sexo forte lá em casa, ficou anos sem me convidar pra nada, muito menos pra aquele happy-hour que ele vive prometendo. No domingo ele me convidou para assistir uma partida de futebol. Não era bem o que eu queria, mas pensei que também podia ser divertido. Eu e o meu lado otimista. Em pouco tempo consegui planejar tudo e despachar as crianças para a casa da Bel, aquela minha vizinha alternativa que ama Florais de Bach. A partida de futebol dura 90 minutos, além do intervalo de 15 minutos. Nesse meio tempo dá até pra rolar uma pipoquinha, pensei.

Fiz uma produção básica e caprichei na sandália, no brinco e no perfume. Também coloquei um colorido na boca e um pouquinho de rímel nos cílios para não ficar com a cara lavada. Quando cheguei na sala, lá estava o Roberto todo esticado no sofá de bermuda e camisa do time. Tem coisa mais cafona? Aí ele levantou, desligou a televisão e disse:

-Vamos embora Maria Clara, senão a gente não consegue pegar um bom lugar.

- Bom lugar pra quê?

- Para ver o jogo, é claro.

E lá fomos nós para o estádio de futebol. O lugar estava lotado e o calor era insuportável. Enquanto a roupa grudava no corpo a maquiagem derretia. Mas tudo era detalhe. Logo na entrada fui revistada como uma criminosa. O que eu poderia ter na bolsa? Um batom, cartão de crédito, fio dental, agenda de telefone, carteirinha do seguro saúde, chicletes e R$10,00. Na arquibancada encontramos dois amigos do Roberto. Ambos estavam vestidos com a camisa do clube. Tem coisa mais cafona? Quando começou o jogo não entendi nada. Era bola pra cá, bola pra lá. Cinco minutos e nada. Dez minutos e nada e até que...GOOOOL! Aí eu não agüentei e gritei:

- GOOOL!

O Roberto me puxou pelo braço e disse no meu ouvido:

- Maria Clara, querida, o gol foi do time adversário.

Aí eu respondi:

- Eu sei querido. (Ele acha que sou burra e não entendo nem de gol) Eu estou torcendo para eles.

- Mas porque?

- (Isso é coisa que se pergunte?) Detestei o uniforme do seu time. Não é nada moderno.

Ele ficou me olhando com aquela cara de idiota que só os homens fazem quando não entendem o que a gente diz. Só me faltava essa. Ter de torcer pelo time do marido. Eu já torço as cuecas dele. Aliás, eu detesto futebol. Estou aqui por ironia do destino.

Quando acabou o primeiro tempo o locutor do estádio anunciou o número de alguns ingressos que foram sorteados. Os donos destes ingressos deveriam ir até o gramado e tentar fazer um gol. Quem acertasse levaria vários prêmios. Por ironia do destino novamente, o ingresso do Roberto foi sorteado. Sem pestanejar ele me deixou na agradável companhia dos dois amigos dele, dois mal encarados. E lá foi ele para o gramado com síndrome de Pelé.

Tempo depois o mesmo locutor anunciou que os carros parados em frente às saídas de emergência do estádio estavam sendo multados e seriam levados pelo guincho. Lembrei que o nosso carro estava bem na frente de uma delas. Procurei a chave na bolsa e percebi que ela tinha ficado com o Roberto. Só restava esperar, pois naquele momento podia chover canivete aberto que o Roberto não sairia daquele gramado. Ele até poderia levar uma multa ou ainda ter de buscar o carro na garagem da polícia. Mas, primeiro ele queria provar, sabe lá Deus pra quem, que era bom de bola.

Os sorteados iam se apresentando um a um para tentar acertar o gol. Na vez do Roberto ele ensaiou, ensaiou e chutou. Chutou a grama. O solado de bolinha do sapato ficou todo verde. A vaia foi inevitável e com certeza aquela foi a maior da vida dele. Pelo menos a mais sonora. Um tanto cabisbaixo ele voltou para a arquibancada.

Quando Roberto nos encontrou eu contei o que havia acontecido ou ainda ia acontecer com nosso carro. Novamente ele me deixou na companhia dos amigos dele, cada vez mais mal encarados. Um deles até me perguntou se eu estava fazendo ginástica. Ao responder positivamente a pergunta, ele disse entender o porque de eu estar tão gostosa. Pode? Enquanto isso o segundo tempo rolava e o corno do Roberto não aparecia. A partida terminou e só depois de alguns minutos é que avistei o Roberto no meio da multidão.

- Onde você estava Roberto?

- Você não acredita o que aconteceu. Eu conversei com o guarda e ele retirou a multa. Aí conversei com o motorista do guincho e ele disse que não levaria o carro se eu o tirasse imediatamente dali. E quando eu estava dando a volta no quarteirão para arranjar um lugar para estacionar a gasolina acabou. Aí eu fiquei procurando um posto. Quando achei, comprei um saquinho de gasolina. Só consegui voltar agora. Quanto foi o placar?

- Dois a um.

- Mesmo?

- Para o meu time, Roberto.

Em casa, à noite o Roberto parecia um tanto esquisito. Andava de um lado para o outro e não falava coisa com coisa. Até achei que tinha sido o doce de jaca. Fui dormir e ele ficou assistindo televisão. De madrugada percebi que ele não estava na cama. Fui até a sala e o encontrei zapeando os canais da TV. Ficamos em silêncio por um bom tempo, até que tomei coragem e perguntei:

- O que foi Roberto?

- Estou com insônia.

- Insônia? Você nunca teve isso. E olha que a gente é casado há dez anos.

- Hoje eu tive.

- Isso tem a ver com aquele chute na grama?

- Pode ser. Paguei o maior mico e vou ter de agüentar a zombaria lá no trabalho por uma semana.

- Você não acha que está dando maior importância para o fato do que ele realmente tem?

- Sei lá. Eu sonhava ser jogador de futebol na adolescência e fazer um gol na frente daquele público fazia parte do sonho.

- Não quero ser chata Roberto, mas já está na hora de acordar. Vá tomar um banho.

Pra você ver como é a vida. Quando uma mulher surta ela é histérica e quando o homem surta ele está com problemas existenciais. O mundo é das mulheres.

 
 
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