ILUSÃO
Luís Valise
 
 

A luz da rua, filtrada pelas frestas da veneziana, traçava pentagramas mudos no teto do quarto. Desistiu, deu-se por vencido e virou o pescoço pra ver o relógio no criado-mudo. 2:37. Lá vamos nós, pensou, outra noite na solidão da insônia. Ao lado Tereza devia sonhar um sonho calmo, já que mal se notava seu respirar. Tentou não pensar na sede, se levantasse seria pior. Agora as sombras no teto eram uma cerca e fechou os olhos antes que começasse a contar carneiros. Assim também não! Evitava mudar de posição para não atrapalhar o sono de Tereza. Começou a sentir um formigamento nas nádegas. Melhor levantar. Os pés encontraram os chinelos, a mão encontrou a maçaneta, os olhos imaginaram a distância. O soalho rangeu como esperado, e logo estava na cozinha. Abriu a porta da geladeira e a luz lá de dentro espichou sua figura contra a parede. Hesitou entre a água e a latinha de cerveja. Afinal, que mal poderia fazer? Estava acordado mesmo, talvez ficasse entorpecido. Pegou a água, bebeu direto do gargalo. Lembrou dos tempos em que a ressaca era como a medalha depois do combate. Foi espiar o mundo pela janela da sala. Nem um gato. Por alguns instantes velou pelo sono do mundo. Lembrou da lata de cerveja. Dono da sua vontade, voltou pra cama. Escravo da insônia.

Aos poucos seus olhos foram-se iluminando dentro da escuridão, e agora os fios de luz no teto lembravam um campo arado. Campo, fazenda, serra, montanha, montanha-russa, Norma. Pronto. Só faltava essa! Norma. Quê que você veio fazer no meu quarto a essa hora? Só porque eu te vi na rua outro dia você acha que pode aparecer assim, quando quiser? Nem vem, que não tem! Eu fiquei trinta anos sem te ver, posso bem ficar outros trinta. Vai querer me aparecer a toda hora, agora? Empolgado, controlou-se para não falar em voz alta. A súbita presença de Norma fez seu coração palpitar. Pensou em tomar o remédio para pressão, mas não ia dar esse gostinho praquela desinfeliz. Também, encontrar na rua, sem mais nem menos depois de trinta anos, é mole? E a coisica não mudou tanto. Continua com seus metro e cinqüenta e três e agora mais roliça. Eu não disse gorda, disse roliça. Três anos de namoro. Trinta anos atrás. Agora é que eu não durmo mais, mesmo! Amanhã vai ser na base do tranco. E quer saber o que mais? – Foda-se. Depois de trinta anos eu mereço ficar um pouquinho com a Norma. Se bem que na rua ela manteve uma distância muito grande pra quem já... bem, vocês sabem. Antigamente namoro não era como hoje. Não passava do sarro. Todo mundo vivia no sarro. Muito melhor que hoje, pim-pam-pum! Não, cada milímetro de pele conquistada tinha seu valor. Coisa muito trabalhosa. Enfim, depois de um ano eu já me liquefazia em dobras e reentrâncias, tudo menos aquilo. O Tesouro de Sierra Madre só depois de casar. Era assim. E a Norma era muito participativa. Uma noite, na casa dela, toda a família na sala vendo televisão, nós... melhor eu parar. Além de perder o sono estou ganhando tesão. E a Tereza não merece isso. Como é que eu posso pensar em outra enquanto ela está assim, tão indefesa? E se eu desse uma cutucada agora, qual seria sua reação? Deixe eu ver... dez para as quatro. Putz, se eu mexer com ela agora ela fica macho! Aliás, ela já anda meio cabreira porque o Vicente deu um carro novo pra Josete. Esse meu sócio é do cacete! A firma tá meio vai-não-vai e ele se metendo em dívidas! Se virar o cara de cabeça pra baixo só cai promissória! Mas a Josete correu ligar pra Tereza contando do carro novo, “me-ni-na, o má-xi-mo!”. Eu tento convencer a Tereza que é melhor ficar sem dívidas, meu coração, o estresse, o escambau, mas o porra do Vicente já deu uma de bacana, agora sobra esse pepino pra mim. Mas eu sei o que é, o puto vive corneando a Josete, então dá uma dessa pra baranga não se tocar. Só não posso falar isso pra Tereza pra não levantar a lebre. Depois, não confio muito. Na primeira briga ela pega e joga tudo na cara da Josete e aí já viu, né, maior cagada. Agora, eu não. Ando na linha. Tá certo, às vezes um tiro aqui, outro acolá, mas sempre tiros sem direção fixa. A menos que a Norma me ligue. Ela disse que está casada, coisa e loisa, mas e se nesta mesma hora a coisica também estiver se revirando na cama? Ela também deve lembrar daquele dia que estava frio e nós ficamos vendo filme debaixo da manta. Vendo filme, pois sim! A gente nem sabia se o filme era colorido ou branco e preto. O pai e a mãe dela, gente fina, não descolavam o olho da tela. Eu também acho que a gente estava respirando meio fundo. Pesado. E a dupla lá, olhos vidrados. Calados. Eu sei que ela lembra. Tem que lembrar! Deixa eu virar de lado, devagar, assim. Agora eu vejo a nuca da Tereza. Acho que eu vou dar uma chegadinha, uma cutucadinha, já-já amanhece, quem sabe ela pegue o bonde andando... Não. Sacanagem. E por cima esse trem tá assim é de mijaneira. Muita água. Saco é ter que levantar de novo, ir pro banheiro, acender a luz pra não mijar na parede, mirar na água e fazer força: xóóóóóóóóó, acordar o prédio inteiro. Mas não tem mesmo jeito, vamos lá. Chinelo. Ainda bem que a porta do banheiro já estava aberta. Deixa eu levantar a tampa senão a Tereza fica uma arara. Pega o baita e mira direitinho: xóóóóóóó

- Roberval!, puta que o pariu, outra vez mijando na cama??!!

 
 
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