DESTINO FURTADO II
Paffomiloff
 
 
Gostaria de ter os poderes de um narrador de novelas, nível mais alto da ordem a quem pertenço, cujos poderes especiais permitem-nos deslocar-se no tempo e no espaço.

Mas não sou. Ainda me encontro no nível dos contos.

Para simular o sonho, refugio-me no passado, processo inverso dos demais mortais, que lembram do passado como um sonho, conforme revelou-me um antigo griot britânico.

Recosto-me na liteira, e recito-me um flash-back:

Os olhos verdes da engenheira cega são inúteis para ver, mas não para cativar. Apesar dos exercícios que faz para manter a musculatura dos globos oculares em ordem, quando está concentrada, ou perturbada, não pode evitar um estrabismo tão suave que um desconhecido não perceberia, e que lhe confere um ar perdido, e desperta, em mim, a vontade de narrar algo doce.

Assim estava ela, um dia, refletindo sobre um vasto leito de rochas:

- As pessoas temem o mar por sua fluidez e instabilidade, mas acham que a pedra é firme e sólida. Tolos! A pedra é fluida e instável, mas num tempo diferente da água.

Ela silenciou e avaliou a precisão do que dissera.

- Caso venha a narrar isto - dirigia-se ao narrador - reforce a idéia de que as montanhas são ondas que correm para os vales através dos sedimentos, e, que se o mar afoga as pessoas e afunda seus barcos, o movimento das rochas afoga cidades, e afunda civilizações.

Ao que acrescentou depois:

- Os rápido destrói o efêmero, o lento devora o longevo.

Dito isto, ela se deitou sobre as rochas, como se estivesse flutuando no mar sem tempo.

Assim me dizia ela, para que eu narrasse, e assim o narro, não com total fidedignidade, pois o narrador trata melhor das palavras.

Agora ela está longe, levada pelo vento, mas sei que vou achá-la, pois o narrador sempre encontra o personagem, onde estiver. Tenho meus cachorros, fortes e bem alimentados pelos cadáveres dos dois humanos que morreram, cujos restos carrego, para eles.

Minha liteira flutua ligeira, enquanto as pedras voam sob minha sombra. Sigo o vento.

Sei o que ela está fazendo. Deve estar sentada, na posição de lótus, concentrando-se, reduzindo os batimentos cardíacos e a circulação ao mínimo, induzindo um estado de hibernação, esperando um resgate, uma oportunidade ou uma morte.

Ela pode sentir a sílica levada pelo vento, espera ler sinais conhecidos. Mando para cima, sempre que posso, um pouco de areia, que impregno com minha aura, e polvilho com lápis lazuli moída, que é a pedra da alegria. Ela receberá essa mensagem, pois o narrador fala muitas línguas.

Descendo pela lateral do rochedo, um cachorro mais velho quebrou a pata. Queria fazer-lhe uma tala, mas os demais perceberam e me repreenderam, com seus olhares. Fiz o que exigiam, e não os culpo, pois não emito juízos de valores.

Cortei a parte que era considerada nobre do cão, e assei-a sobre uma pedra quente, antes de comê-la, sob o olhar atento da matilha, que aguardava que eu terminasse, para devorar a carcaça.

Caminhei mais um pouco, e algo me chamou a atenção, nas montanhas que imergiam nas sombras do ocaso:

Inesperados laivos de verde cresciam sob grandes redes de material translúcido, que estendiam-se quilômetros acima dos picos rochosos, roubando o calor do sol oblíquo, transformando nuvens geladas em cachoeiras caudalosas.

Era o indício que eu esperava.

Algo que detém uma nuvem, há de deter um balão. Minha impaciência para reencontrar minha personagem, e poder retomar o rumo da história me induz a pular um capítulo, desta forma chegarei mais rápido.

 
 
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