SEM VOLTA
Juraci de Oliveira Chaves
 
 
Era a milésima vez que se olhava no espelho. Com aquele agasalho-disfarce, pretendia garantir não ser reconhecida, fora de casa.

Kika, há uma semana, armazenava coragem para atender àquelas ligações perigosas, da madrugada. Cada vez que o telefone tocava, soava estridente, na solidão da noite. Só às madrugadas e sem identificação. Aquilo aguçava a sua curiosidade mas, já gostava. O dia que o telefone não tocava, era noite de insônia.

Olhou pela janela. Era hora. Pegou a bolsa e a chave do carro ainda na garagem. Arrancou-se apressada. O mau tempo a desafiava. Ventava forte. As copas das árvores zurziam. Fazia frio, Kika suava. Desceu a curva em alta velocidade. Evitava olhar para os lados. No sinal, rezou para não ser reconhecida pela vizinha que ziguezagueava, entre os carros parados, ao atravessar a rua. Morava em frente e taramelava demais.

Deixou de lado todas as conveniências sociais. Parecia estar tudo dando certo. Na estrada sentia-se livre das amarras do marido, apesar dele estar sempre às compras, viajando. Casou-se muito jovem, por influência do pai, para solidificar a empresa que ruía.

O vento penetrava pelo interstício do vidro mal fechado e fazia arrepios em partes do seu corpo. A face metamorfoseava do rosado para o rubro e as mãos gelavam sobre o volante. Continuou o trajeto pensando no que fazia. Buscava motivos para se arrepender e desistir da idéia. O que a esperava pela frente? Não sabia. O desconhecido dava-lhe uma sensação, ora de mal-estar, ora de liberdade. Era a primeira vez que se metia em aventuras.

Os tímidos raios solares e o aroma silvestre, que penetravam no carro, eliminavam o desejo de renúncia.

"Deveria ter ignorado aqueles telefonemas anônimos. Mas, meu esposo nunca saberá deles."

E neste emaranhado de idéias, subia e descia curvas, tão curvas como as de sua vida.

O rosto, do outro lado do fio, ainda uma incógnita a ser decifrada, mas a voz, algo familiar, abafada.

Decidiu parar o carro, um pouco antes e chegar à pé. Colocou óculos escuros, carregou a mão no batom escarlate e aproximou-se com cuidado, do local combinado.

- Você !!! - murmurou Kika, com enorme espanto.

- Sim, eu. Percebi que havia algo estranho. Resolvi descobrir. Deixou de gostar de mim? Era só dialogarmos. Não precisava arriscar-se nesta aventura. E se fosse uma armadilha pior?

- Pior que isso?

Silêncio profundo. Nenhuma palavra mais. Não se olhavam nos olhos. A confiança sólida, fora trincada.

Kika ficou a observar o marido afastar-se em passos vagarosos e pesados.

Os dias se passaram. O vento da saudade bateu à porta. Ele nunca mais deu notícias. Para casa não mais voltou. Kika sentia sua falta. As sombras ocuparam o lugar onde ela pensava não haver brilho, alegria. A paisagem empalidecida ofuscava ainda mais, as poucas recordações vividas mas, marcantes. Não havia estrelas, só escuridão. Tudo agora era feio, melancólico. Onde estariam aqueles olhos, aqueles braços fortes? Buscava-os debalde.

Só agora entendia. Tarde demais...

 
 
fale com a autora