CONTER OU ESTAR CONTIDO
Oz

Eu sei, não estou preparado para escrever sobre o tempo. A bem dizer, nunca estou preparado para escrever sobre coisa alguma. Às vezes um ou outro caminho de escrita - ou uma luz, como queira chamar - desaba sobre mim e de repente percebo que escrevi, não deixei passar o momento. Cada momento é único, é imperioso. Sempre achei que o processo de criação envolve forças que desconheço, forças que não sei se estão no obscuro da mente ou se no infinito do cosmos. Com é que vou explicar isso? Estou a considerar que o escrever é quase sempre um ato de entrega ao desconhecido.

O desconhecido vive em eterna luta com legiões altaneiras de palavras. O renovável exército de palavras está a serviço do tempo. A função das palavras: inscrever o desconhecido no tempo, torná-lo universal. No caminho para a universalidade é que se trava o mais fatal dos combates: o do homem com o tempo.

Frente ao tempo não pode o homem nunca vacilar: contém ou está contido? É imperioso que saiba exatamente sua posição: contém ou está contido? É imperioso. É imperioso. É imperioso. Contém ou está contido?

Essa relação importa sobretudo à História. Os que se assenhorearam do tempo são os que o contiveram, são os que têm nome, são os que flertaram com a imortalidade. Os que são sem nome, estes estiveram ou estão contidos no tempo. Viveram, é certo, tanto ou mais que os primeiros, mas pensaram ser embaraçoso visualizar e até mesmo desejar a imortalidade e se contentaram em flertar com o cotidiano.

Se isso ou aquilo foi bom ou se foi ruim, não cabe aqui colocar. Para isso são determinantes as circunstâncias de cada acontecimento. Às vezes, estar contido é tão melhor. Já conter e não saber o que fazer com o tempo que se contém pode ser fatal.

Será que estou falando coisa com coisa?

Acho que tenho um exemplo da vida real. Essa semana uma pessoa de quem gosto muito me escreveu perguntando se eu conhecia uma música chamada "o mundo anda tão complicado", que ela gostava. Respondi assim:

"Essa não é aquela música do Legião que começa assim 'gosto de ver você dormir / que nem criança com a boca aberta' ? e depois fala de uma mudança grande, geladeira, televisão, telefone, som, mudança essa entrecortada com coisinhas do cotidiano, como ir ao cinema, acordar meio-dia, dormir no chão, esquecer a chave de casa, chamar os amigos pra fazer uma feijoada, ficar só de bate-papo, contar um pro outro como foi o dia e depois dizer 'estou com sono, vamos dormir'... depois fala algo como fazer mil coisas ao mesmo tempo, eis umas das razões por que o mundo anda tão complicado... é essa música, não é? Não sei de cor a letra, mas me lembro de algumas passagens, principalmente o finalzinho, que marcou mais, tanto que decorei, quando se diz:

'quero ouvir uma canção de amor
que fale da minha situação
a de alguém que deixou a segurança do seu mundo
por amor
por amor'

Decisão difícil essa! Quantas pessoas você conhece que deixaram a segurança do mundo que construíram por amor? (não um amor necessariamente devotado a outra pessoa). Isso, em livros ou filmes, é comum e encanta e mexe com nossa imaginação... mas na vida real a história é outra. Na balança da consciência, colocar a segurança de um lado e o amor do outro chega a ser injusto. A segurança vai sempre levar a melhor. Agora, lá no coração, onde nem balanças existem, lá a coisa é muito diferente, lá o amor reina soberano e a razão cede espaço à intuição. E o coração é assim porque é lá que se sente realmente a brevidade da vida, porque o fim da vida começa necessariamente quando cessam as batinas no peito... e o que parecia custar tanto, de repente, passou. Pois é, o Renato Russo sabia dessas coisas, assenhoreou-se de seu tempo e não o deixou passar. O tempo do Renato continua em mim, em você, em milhões de pessoas. esse é um dos milagres da música, do rock. Tem coisas que só o rock consegue dizer!"

O que eu queria mesmo... era só compor uma letra de rock. Agora. Neste momento. Já.

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