O CERNE
Beto Muniz

 
 

Vamos supor que num tempo distante existiu um mundo fantástico onde as pessoas nasciam transparentes, com veias, músculos, tendões, ossos e cartilagens à mostra. Imaginando assim cruamente e sem entender o porquê dessa minha suposição, pode parecer feio, esquisito ou mesmo bizarro. Porém eu quero pedir ao leitor que domine seu estranhamento e viaje comigo nesta breve fantasia.

Supondo que você tenha comprado minha história e que estejamos unidos pela mesma imaginação, vamos visualizar uma dessas pessoas de pele incolor quando completar quinze anos: os familiares estão em festa e o presente da debutante é poder escolher uma cor para sua pele. Livre arbítrio. Nessa festa fantástica, estaria no púlpito, ao lado do sacerdote laranja, a mãe azul, o pai verde, o irmão preto, o avô amarelo, a avó roxa e uma irmãzinha caçula também transparente. O local da festa é um templo e a aniversariante, após cumprir os rituais de preparação, desce soberana por uma das duas escadas em caracol. Ela abre o seu riso cristal pela última vez enquanto desfila sua transparência aos convivas. Não há cumprimentos, nem paradas, nem despedidas. Escolher uma cor no dia do décimo quinto aniversário é tão normal quanto respirar e ela já sabe qual vai ser a cor que irá acompanhá-la pelo resto da vida bem antes de entrar no santuário do arco-íris. A expectativa cresce entre os presentes e todas as atenções estão voltadas para o enorme portal que se fechou atrás da moça incolor. Após alguns minutos de angustiante espera, um ranger de madeira e ferro se ouve e eis que surge a debutante com sua linda cor fúcsia.

Entre aplausos e suspiros a moça é abençoada pelo sacerdote. Todos cumprimentam a família e comemoram a entrada da garota na idade adulta. Nenhuma recriminação. Ninguém consegue achar estranho, feio, ridículo ou sentir qualquer tipo de restrição pela cor escolhida. Só alegria. O único pecado é praticado pelos menores de quinze anos, que sentem uma inveja arrepiante da aniversariante. Mas são arrepios e invejas incolores ainda. Os convidados da mocinha fúcsia estão se retirando para um dos inúmeros salões de festas, anexo ao templo, onde ela e o pai dançarão a valsa das cores, quando pela outra escada em caracol desce um rapazola transparente. Ele entra pelo portal para retornar ocre. Seus familiares e convivas comemoram brevemente, pois outra moça surge no topo da escada e o templo precisa ser ocupado por familiares de outros transparentes em dia de receber a cor. Fantástico!

Supondo que fantasiar esse mundo tenha lhe parecido agradável, convido-o a pular o tempo em alguns milhões de anos, mas vamos permanecer neste mesmo local. Agora as pessoas já não podem escolher a cor. Por alguma razão essa magia se desfez no tempo e as crianças nascem com a cor dos pais. Os povos estão secionados pela cor: os azuis, os negros, verdes, fúcsias, amarelos, brancos e vermelhos. São tribos rivais. Não há paz. Inicialmente os azuis discutiram com os amarelos e os machos passaram a seduzir a mulher do outro com o intuito de gerar filhos verdes para o rival criar. Esses bastardos verdes se tornam anarquistas, atraíram mulheres vermelhas e geraram a tribo marrom, que se indispôs desde o principio com os rosados. No meio das intrigas os laranjas, doutrinados pelos escritos dos antigos sábios, se tornaram sacerdotes e mediadores. As cores foram se misturando ao longo dos tempos até restarem poucas e imensas tribos. Os sacerdotes mantiveram relativa paz, mas atualmente as guerras são acirradas, apesar da mesma origem os coloridos não são capazes de administrar as diferenças, não dão ouvidos aos laranjas e estão perdendo o bom senso. Num último vislumbre de razão, os líderes tribais decidem que o melhor a fazer é manter distância uns dos outros e, assim, a terra é dividida em grandes áreas, cada tribo toma posse do seu canto de mundo e acabam-se as disputas.

Ainda supondo que mais uns milhões de anos se passaram: os laranjas e suas doutrinas foram extintos, os azuis foram tragados pelo oceano, os verdes foram dizimados pela febre roxa e as outras tribos se adaptaram ao local escolhido para viver, prosperando em riquezas e sabedorias. Neste suposto novo mundo as castas foram se multiplicando até tomarem conta de toda superfície e finalmente se reencontrarem. Apesar das velhas lendas, a maioria desconhecia a existência de seres com outras cores. Houve estranhamento, confusão e não demorou muito para que o temor do desconhecido instalasse novamente a guerra entre os povos. Uma a uma as nações foram dominadas pela tribo fúcsia, que se autoproclamou "a raça pura". Ao vencedor as honras e as glórias, aos subjugados a extinção de suas tradições, culturas e, principalmente, de seus descendentes. Os elos com o passado foram definitivamente perdidos e cada qual passou a ser visto e valorizado apenas pela cor da pele. Ninguém concebe que em algum lugar, distante nos séculos, existiu um mundo fantástico onde as pessoas nasciam transparentes com veias, músculos, tendões, ossos e cartilagens a mostra. Uma época fantástica em que as pessoas podiam escolher a cor que usariam na pele o resto da vida e a diversidade de cores era motivo de regozijo.

Para finalizar essa viagem, se o leitor me permite um último devaneio, eu ainda posso presumir que os incolores foram felizes até o dia em que fulano desdenhou da cor que sicrano escolheu. Daí em diante, pra generalizar o fuzuê e beltrano tomar partido na briga foi só uma questão de solidariedade pela cor na pele... Mas isso tudo, lógico, são apenas suposições sem nenhum vínculo com a realidade.

 
 

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