SUPOSIÇÃO
Humberto Bley Menezes

Se ele realmente sentisse medo não estaria ali. Só o fato de entrar demonstra o quanto corajoso se sentia agora. No entanto, já fora um maricas, como o chamavam os piás da rua, e do Grupo Escolar onde cursara o primário. Sentia um medo terrível de qualquer pássaro ou ave; asas se debatendo, sem direção, apavoravam seus sonhos. Sabia, sentia que algo o espreitava de algum lugar naquele aposento. Olhos negros, sobrancelhas muito grossas, uma boca enorme de sorriso debochado, na cabeça uma cartola azul, vermelha e branca seguiam seus movimentos cuidadosos. Não se importava. Pensando bem, havia crescido e se tornado adulto com esta mesma sensação de ser observado constantemente. Por que então este sentimento desconfortante, por que o arrepio na espinha? E a sua coragem? O ambiente não era escuro nem sombrio, ao contrário, pessoas transitavam, mulheres elegantes circulavam e homens de óculos escuros se faziam importantes a seu redor.

O pescoço apertado pela gravata de cores extravagantes. No horizonte um mastro gigante mostrava farrapos verde e amarelo. Seria o "pendão da esperança, símbolo augusto da paz"? Os olhos, de soslaio, observavam sua vontade de vomitar.

A luz lá fora era intensa, olhos ardendo, e ele com a missão de trilhar este espaço de sol refletido no mármore do caminho; ou seria uma rampa?

De repente os monstros de sempre invadem sua alma. À direita o parlatório, e uma figura quixotesca prometendo a felicidade. Seus ouvidos queimam, querem vazar palavras da memória.

"Minha gente. Não me abandonem, não me deixem só." Não. Impossível conviver com o mesmo destino. Não depois de tudo que se fez pelo fim do pesadelo.

O piso é fofo e verde, o sonho é negro e febril.

Neste momento a memória se mostrou cruel. Não seria preciso coragem para enfrentar estes mortos vivos. O medo era justificável. Nada no entanto deveria tê-lo conduzido a esta cerimônia fúnebre. Seus representados e camaradas que o perdoassem, mas um solene gesto involuntário e incontrolável seria o epílogo deste dia de terror.

- Parabéns, o senhor é o exemplo de brasileiro que todos nós admiramos. Obrigado por acreditar na pujança desse país. Em nome deste governo passo-lhe às mãos esta menção honrosa. Obrigado. Eram mãos reticentes, frias como as palavras.

Pensou. Pouco resta, logo tudo estará consumado. Os fantasmas sorrateiros vencerão. Engolirão sua dignidade e tudo estará terminado.

Ânsia. Tentativa de controlar o pavor mas a bílis e o almoço de rodízio de carnes com maionese não esperou pela digestão. Tudo derramado no fofo chão verde, no calçado de couro alemão, terno de corte inglês, gravata italiana manchados agora pela consciência de um brasileiro. O anfitrião reclamou:- "Assim não pode, assim não dá." Se retirou e todos o seguiram.

Corria o ano da graça de um mil novecentos e noventa e nove. Pelo menos cem de promessas de terra, moradia, saúde, educação, segurança, igualdade de oportunidades, dignidade e soberania para os brasileiros.

Em tempo: Atrás de uma bandeira enorme, listrada de vermelho e branca, os olhos negros, as sobrancelhas muito grossas, a boca enorme de sorriso debochado cobriu o rosto com a cartola vermelha, azul, e branca gargalhando grotescamente.

F M I aliás F I M

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