ENCONTRO
Nato Borges

Abriu os olhos. Não imaginava que poderia depois de tudo, mas abriu assim mesmo. O que sentiu mais do que viu não se parecia com os lugares que conhecia. Não era um hospital, nem sua casa. Não era nada. Além do mais, se tinha consciência, algo tinha dado errado.

- Vejo que acordou...

A voz era comum, assim como a aparência, o olhar, as roupas e todo o resto. Incomum era a situação. Não gostava de perder o comando, ser pego de surpresa, estar desprotegido.

- Acordei. E você? Quem é?

- Não faz diferença...

- Como não? Que lugar é esse?

- Acho melhor você se acalmar. Não dá para explicar tudo assim, de uma vez. Preciso saber do que se lembra.

- Me lembro de colocar o revólver na têmpora e puxar o gatilho. Depois acordei aqui, agora...

- Hum , hum...

- Pelo jeito deu tudo errado. Não morri e ainda vim parar aqui...

- Quem disse que você não morreu?

A pergunta ecoou como um sino de catedral. De fato, a arma estava carregada e azeitada. Suas mãos estavam firmes e, afinal de contas, têmporas são têmporas. Não havia erro. Então tinha morrido e pronto. A lógica o levara à primeira conclusão, mas começava a embotar a segunda.

Se tinha morrido, como estava acordado? Onde estava? Quem ou o que era aquela figura ali do seu lado? Instintivamente levou a mão à cabeça. Não havia nada. Sem dúvida o espanto devia estar estampado em seu rosto.

- Agora podemos conversar. Acho que você já tirou algumas conclusões.

- Não tirei nada. Não estou entendendo nada. Isso só faria sentido se houvesse vida após a morte

- Quase isso...

- Se é isso, aqui deve ser o céu, ou o inferno, ou o limbo e você é quem? Deus, um anjo, algum espírito?

- Tudo isso...

- Então eu estive errado toda a vida! Cometi pecados, vou para o inferno, tem um monte de gente que vai para o paraíso, duvidei de tudo o tempo todo. Existe céu, inferno, castigo, pecado, juízo final...

- Nada disso!

- Como nada? Dá para explicar?

- Claro. Na verdade você está um pouco certo. É fato que eu sou o criador de tudo aquilo lá e que vocês me deram nomes os mais diversos: Deus, Jeová, Alá, Jah, esse negócio todo...

- Mas era o que eu dizia...

- Pois é. Mas essa história de céu, inferno, pecado... Isso é coisa de vocês lá. Eu não tenho nada a ver com isso.

- Agora eu não entendi nada.

- Eu vou explicar. Não inventei o mundo para ser paraíso de ninguém, muito menos etapa de purificação da alma, nada disso.

- Foi para quê então?

- Diversão.

- Diversão?

- É isso mesmo. Diversão. Estava entediado, inventei o mundo, coloquei vocês lá e fico daqui assistindo.

- Mas é só isso?

- É, ué. Esperava o quê? Aquela história de cordeirinhos, anjinhos no céu. Nada. Vocês são meu Big Brother particular, brinquedo mesmo.

- Mas as pessoas imaginam...

- Besteira. Imaginam besteira. Tudo que se diz por lá não passa de suposição, crendice. Vocês supõem demais, se bem que isso me diverte também.

- Mas então tem sua mão em tudo o que acontece por lá.

- Ah, não. Não tem mesmo. Eu disse que eu inventei aquilo, não que eu controlo. Se eu controlasse não teria graça, seria previsível. Nada disso. Eu inventei e assisto, todo o resto é por conta de vocês, incluindo aí santos, aquele filho que me arranjaram, pecado, penitência, oração. Rezar por exemplo. Rezar não adianta nada. Eu até escuto, mas não posso fazer nada.

- Mas então eu estava certo. Eu sempre estive certo!

- Justamente. É por causa das pessoas como você que o mundo me diverte. Se fosse de outro jeito eu já teria me entediado há muito tempo. Imagine, tudo certinho, todo mundo bonitinho naquele mundinho sem problemas, sem nada de interessante acontecendo. Seria um horror. Na verdade, são as pessoas como você que foram feitas à minha imagem e semelhança.

- É, mas se descobrem que você pensa assim, e ainda que há vida após a morte, aquilo vira uma bandalha.

- Mas quem falou em vida após a morte?

- Ué? Eu não estou aqui?

- Ah, mas aí é outra história. Não tem nada após a morte, nada. O problema é que não gosto de suicidas...

- Olha o castigo aí...

- Não tem castigo. Só não me agrada que deixem a brincadeira antes do programado. Você, por exemplo. Você teria mais 35 anos de vida...

- E você está sugerindo que eu volte...

- É isso. Ofereço uma oportunidade a todos os suicidas. Se você aceitar, volta e vive seus 35 anos...

- E se eu não aceitar?

- Você deixa de existir aqui, acaba, desaparece. Não há nada mais depois daquilo.

- Mas se eu me matei, é porque não queria mais mesmo.

- Por mim, tudo bem...

- Espera, espera. Não terminei de pensar. Por outro lado, eu seria um dos poucos a saber como as coisas realmente funcionam, que tempo eu teria, sem traumas ou culpas...

- Exatamente.

- Vou aceitar.

- Eu imaginei que fosse. Somos muito parecidos, e eu aceitaria se fosse você. Bom, foi um prazer te conhecer e continue como sempre foi.

- Claro, claro. Eu é que agradeço. Mas o que eu faço agora?

- Feche os olhos, só isso.

Quando pôde delinear as imagens novamente, viu que estava em um hospital. Ainda naquele estado em que as portas do subconsciente não estão completamente fechadas, percebeu que não conseguia se mexer, ou falar. Devia ser normal, afinal esteve quase morto. Em um canto do quarto pôde ver com o canto dos olhos - sim, já podia ver - sua mulher, uma das razões de seu encontro e futura vítima de sua vingança, com quem imaginou ser o médico. Percebeu que já podia ouvir.

- Infelizmente não há previsões, nem chances de recuperação. Ele está estável, mas o cérebro foi muito afetado. Pode ficar anos vegetando dessa forma.

Ainda pôde ouvir uma gargalhada antes que as portas se fechassem por completo, deixando uma frase ecoando como um sino em sua cabeça inerte: "vocês supõem demais".

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