VALETE DE PAUS
Luís Valise

 
 

O ônibus sacolejava por ruelas tortuosas. Evitava olhar os outros passageiros, sentindo-se uma intrusa em meio à miséria dominante. Suas roupas, seus cabelos, sua pele denunciavam a diferença de origem. Se tivesse coragem desceria ali mesmo, pediria informações e voltaria correndo para o aconchego do bairro nobre de onde não deveria ter saído. Acovardada pelos seus cabelos loiros, seguiu viagem até o ponto final, onde estaria sendo esperada. Para onde quer que olhasse a paisagem cor de barro predominava, salpicada de crianças barrigudas e seminuas. Cachorros esqueléticos jaziam sob o sol escaldante. Enfim os passageiros se levantaram e andaram em direção à saída. Esperou até que todos tivessem descido, e só então levantou-se. Erro. Ao colocar a cabeça fora do ônibus viu que todos a olhavam, destacada da paisagem como um cogumelo na lua. Uma mulher adiantou-se: - Analuísa? Siga-me. Annaluísa quis confirmar: - Dona Zoraide? Foi logo corrigida: - Madame Zoraide! E foi abrindo caminho em meio à pequena multidão que se formara à sua volta.

Enquanto caminhava Annaluísa examinava as roupas da mulher, excessivamente coloridas, e se arrependia: deve ser de araque. Tarde demais. Entraram num quintal de terra com pequenos tufos de mato. Chegaram ao casebre de chão batido, quente como um forno. A mulher indicou uma cadeira junto à mesa coberta com toalha de plástico, e sentando-se no lado oposto tirou um velho baralho do bolso da saia, e ofereceu-o com as figuras escondidas. - Escolha três cartas. Annaluísa virou um valete e duas damas. A cigana fechou os olhos, e disse: - Desista desse homem. Existe outra mulher. Annaluísa respondeu com raiva: - Por isso estou aqui! Eu quero ser a única! A mulher respondeu, resignada: - Tudo tem limite. Annaluísa insistiu: - Eu pago o dobro! Zoraide espalhou as cartas com habilidade sobre a mesa, formando um semi-círculo. - Escolha mais três. Annaluísa vacilou. Seus dedos percorriam as costas das cartas, e foram apontando: - Esta, esta e esta. Viradas, as cartas mostravam: valete e duas damas. Annaluísa, ela mesma, pegou a dama preta e rasgou no meio. Depois queimou as duas metades. Pagou o estipulado em dobro, e voltou sozinha ao ponto de ônibus. Espírito renovado, nem reparou no tipo mal-encarado que sentou ao seu lado. Só pensava em Danilo. Por ele fora àquele inferno.

Danilo nunca soube bem o que aconteceu. De repente, estava aos amassos com Annaluísa. O pai da moça ofereceu-lhe uma gerência em sua firma. Com o casamento viria uma diretoria. Como de fato veio. Lua-de-mel na Europa. Na Espanha viram uma cigana que fumava cachimbo e brincaram de ler a mão. Para Annaluísa ela disse: - Você terá o que pediu. Para Danilo ela disse: - Você terá tudo o que quer.

Quiseram e tiveram três filhos. A empresa era próspera. Annaluísa nem se lembrava de Madame Zoraide, e se perguntada diria não ter passado de um sonho. Até o dia em que chegou em casa mais cedo, sem avisar. Notou o espanador sobre o sofá. Ouviu ruídos vindos do andar de cima. Subiu pé-ante-pé, ouvidos atentos. Do seu quarto saíam gemidos e risos abafados. Então ela lembrou: - Madame porra nenhuma! Não passava de uma Zoraide qualquer! E ainda por cima com a faxineira! Foi logo metendo a mão no trinco e abrindo a porta com violência. Na cama, nu, Danilo. Montado em suas costas, olhos arregalados, o motorista.

Devia ter rasgado o valete.

 
 

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