SEMANA SANTA
Virgínia Pinto e Nosé

Infelizmente, eu tinha que adentrar mais uma vez aquele quarto. Todos os dias o mesmo ritual era cumprido, visitava minha mãe no hospital, onde ela passou a ter andar e quarto cativos, após tantos anos de doença.

O que me trazia algum consolo, era que sempre poderíamos ter uma surpresa. Às vezes ela nos recebia com alegria, outras totalmente ausente de si e nas mais difíceis em seu delírio de morfina, tão triste de compartilharmos. Mas aquela tarde foi diferente.

Abri a porta e me preparei para o que estaria por vir. Fui recebida por sua enfermeira com ar preocupado e aproximei-me da cama. Ela, alienada, conversava com o crucifixo da parede e mais alguém que eu não conseguia ver. Silenciosamente, me pus a prestar atenção no diálogo, ou no monólogo. Após poucos minutos pude entender que ela conversava com seu pai, já falecido, meu avô que tantas lembranças carinhosas me trazia. Comecei a ficar preocupada. Sempre ouvi dizer que não é bom este contato direto com nossos entes queridos já mortos, nossa cultura diz que talvez estejam vindo buscar alguém, acompanhados da morte. Um arrepio de medo atingiu meu estômago.
Imaginei eu, que estava diante da hora final. Estaria eu preparada para enfrentar com ela aquele momento tão desconhecido e temido? Em silêncio absoluto, peguei forte em uma de suas mãos e a enfermeira na outra. Talvez, ambas, num sinal de cumplicidade naquele momento inesperado. Rezei. Pedi a Deus que fosse generoso com ela e que a levasse para junto Dele. Passaram-se vários minutos, e nada aconteceu. Ela continuou naquele estado distante, sem perceber minha presença ali.

De repente, me surgiu uma idéia. Chamo o enfermeiro de plantão e peço algo para dor, pois aquele delírio estava indo longe demais, já que vieram agregar-se ao pai o irmão falecido, a tia e eu não iria conseguir suportar aquilo por muito mais tempo.

Que alívio, o remédio para dor foi dado e ela dormiu. Não sei dizer por quanto tempo, mas foi o suficiente para ela acordar muito bem disposta, sorrindo e me cumprimentando como se eu tivesse acabado de chegar. Fiquei intrigada com aquela nova recepção e não resisti ao perguntar, o que e com quem, ela conversava.

Ela com toda clareza, me diz: - Com Jesus! E eu bem desconfiada, retruco: - E o que a senhora pedia a Ele? Ao que ela me responde como óbvio:- Minha filha, o que sempre pedi a Ele a vida toda! VIDA!

Calei-me. Como pude encomendar a Ele mesmo, sua partida? Que direito tinha eu de querer aliviar algo que ela não queria que fosse aliviado? Parei de querer resolver tudo e entendi que existem coisas que não temos controle e que só o tempo é que sabe das horas.

Passaram-se mais dez longos dias e entramos na Semana Santa. De madrugada fui acordada por meu pai, avisando que ela acabara de partir. Era quarta-feira, mas não uma quarta-feira qualquer. Dois dias depois seria Sexta-feira Santa, dia da morte de Jesus. E cada um a seu tempo, partiu, em sua exata hora.

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