OS AFICIONADOS
Fernando Borba

Nunca a tinha visto, antes daquele dia. Hoje a figura de Dalva perdeu-se em minha memória, e não posso reavivá-la, pois enxergo muito mal. Mas em certa época fez-se entre nós a ilusão de intimidade dos que descobrem, num segundo iluminado, um grande e às vezes secreto interesse comum.

Na seção de livros sobre cinema eu folheava o 'Gritos e Sussurros', quando a vi segurando um exemplar ressuscitado do 'Film Sense'. Olhou para mim e disse: "Não se fazem mais filmes como antigamente." Não, não foi nada assim tão óbvio. "Não se vê mais a beleza de um filme com árvores cinzentas, montanhas cinza-escuras sob um céu gris, nuvens esfiapadas de um cinza quase branco, onde tudo é cinza, desde o alazão dos cavalos até o negro da noite, e até a noite só é percebida quando o cinzento da lua cheia aparece iluminando um coiote cinza-prata que uiva na colina."

Sentados no bar ao lado da livraria, palmilhamos por toda a tarde o nosso território. E por muitos dias, era ali, como se estivesse na penumbra, que Dalva discorria suas memórias fragmentadas, visões que surdiam em fogo como velhas fitas que se incendiavam diante de carvões incandescentes, mas logo eram emendadas com um pedido de desculpas. Uma vez, batendo no peito e com a voz trêmula, disse que tinha assistido à morte de trinta cinemas. "Cinemas que eram meu cenário, que eu freqüentava em minha solidão e que muito amei" - e seus olhos míopes se alagaram por trás dos óculos pesados. Lembrei quando éramos jovens e as luzes começavam a acender e piscávamos, esperando que o sonho se reatasse, mas não, o sonho terminara definitivamente, e tudo se iluminava, e saíamos para o frio da noite, carregando nossas ilusões até o próximo filme.

Um dia me convidou para conhecer os aficionados.

Marcamos encontro na porta de um sobrado em frente ao Capibaribe. Em pouco ela chegou, muito alegre, com um vestido esvoaçante e de largas ombreiras (como os de Joan Crawford em 'Humoresque'). Castanholou com os dedos na porta e chamou "Seu Jones. Seu Jones. Abre. Sou eu." Entramos num salão enxovalhado, com sarrafos pelos cantos. O porteiro era um negro velho que tossia contra a palma da mão. "Ei, Jones", falou Dalva de passagem, indo reunir-se a dois homens e uma menina ao pé da escadaria.

Perambulando pelo salão, fiquei a observar os que entravam. Havia mais de vinte. Uma moça a quem faltava um braço lembrava os olhos redondos de Giulietta Massina. A um sujeito parecido com Woody Allen, perguntei qual seria o filme da noite. "A programação aqui é incidental. Ou acidental, se preferir" respondeu, com a voz fanha de Woody. Retirei-me e fui olhar as tralhas amontoadas a um canto. "Mais um cine-clube que teima em sobreviver", pensei. "Duas dúzias de pessoas fingindo que o ato de ir ao cinema não acabou, como acabaram o chapéu, o rapé, o piano na sala."

No andar de cima havia uma platéia de cinema, com poltronas antigas de couro separadas por um corredor muito largo. Os assistentes conversavam num murmúrio uniforme e tive a impressão de que me examinavam. Dalva negou-me apoio: escorregando pela cadeira, semideitou com um suspiro até submergir a cabeça no encosto. Olhei para a fila de trás e encontrei a menina da escadaria. Só então percebi que não era uma menina, mais uma mulher pequenina, com o olhar brilhante num rosto expressivo. "Eu também sou novata", disse. "É a primeira vez que venho."

A fraca luz piscou e sumiu. Um homem e seu filho apareceram na tela, vindos de uma caminhada muito longa, à procura de sua bicicleta roubada. Estranhei que tivessem começado aquele filme famoso pela metade, e mais ainda quando ouvi gritos, imprecações. No fundo da sala, três homens seguravam outro e o arrastavam para o corredor, onde passaram a espancá-lo com método. "Calma, não se intrometa. Eles fizeram o julgamento do ladrão de bicicletas", fez Dalva, apertando minha mão. "Já passou. Já passou."

A tela foi tomada por cenas de guerra. Uma fila de automóveis numa estrada rural era metralhada por aviões nazistas. De um carro (os pais mortos no banco da frente), saiu uma garota que andou desnorteada pelo capinzal florido, até ser acolhida por uma família de camponeses. Havia medas de feno, galos coloridos, leite fresco, queijo chevreton. Havia um menino da mesma idade chamado Michel. Eles faziam cemitérios para bichinhos, armavam cruzes, enterravam insetos, num brinquedo inocente mas proibido. Um dia Brigitte escandalizou Michel com sua aceitação da morte, e o convidou para morrer. Rebentaram gritos na platéia: "Ei, Jones. Pára a projeção." "Depressa." "Jones. Ó Jones."

Uns assistentes vieram rodear a poltrona da mulher-menina. Segurei a mão de Dalva e ela se abandonou, fria. Na tela, o rosto de Brigitte mostrava um sorriso duro e mais velho que seu breve tempo. A menina-mulher foi arrastada e todos nós a seguimos. Jones desceu da cabine de projeção apoiado num guarda-chuva sem os panos, um objeto afiado, com suas oito varetas negras, sua ponteira brilhante e seu castão de junco segmentado como uma coluna vertebral. A sósia de Brigitte, soluçando através da mão que lhe tapava a boca, foi deitada no corredor. Vi por entre os braços dos homens umas roupas rasgadas, alvos membros raquíticos, pequenas cruzes toscas. Dalva me empurrou docemente: "A sua segunda prova. Chegue mais perto dela."

Curvado sobre a haste do guarda-chuva, Jones lambia filetes vermelhos. Pensei que deviam ter um lugar para esconder o corpo, mas aquelas manchas jamais seriam removidas do soalho.

A tela voltou a viver e muitas cenas foram giradas. Todos haviam retomado seus lugares. Ouviu-se um bulício nas poltronas do fundo, e um gemido foi abafado pelo som de uma balada de Dimitri Tiomkim. Música medieval acompanhou Joana D'Arc embuçada no manto branco, e logo o crepitar do projetor confundiu-se com os estalidos da fogueira no auto de fé. Depois, vi a moça sem braço levada pelo corredor, abrindo ainda mais os aterrorizados olhos redondos.

Afundei na poltrona e entreguei-me a um prazer nunca vivido. Era aquilo com que sempre sonhei: a infinita dimensão do amor ao cinema. Começava a compreender os aficionados. Olhei para Dalva com paixão.

Quando surgiu na tela a lua cinza-pérola, um olho enorme e andaluz disputou seu espaço. Apareceu uma navalha antiga. A lâmina prateada cortou o tecido de cristal e luz da íris cinzenta, deslizou pela esclerótica e fez vomitar uma gosma lenta. Não reagi quando muitos me seguraram e fui arrancado da poltrona. Ajoelharam sobre minhas pernas e meus braços e imobilizaram minha cabeça contra o soalho. Um abriu minhas pálpebras e outro empunhou uma navalha antiga. Dalva sorria, curvada sobre meu rosto: "A sua terceira prova. Só mais essa prova." Senti a lâmina prateada cortar a espessura de meu olho direito e o humor vítreo jorrar, quente e pegajoso.

Dalva continuava sorrindo: "Já passou. Já passou. Como estou feliz. Agora somos todos aficionados."

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